domingo, fevereiro 11, 2007

VII - Nossa gansinha Martina

Chegara o grande momento. Durante vinte e nove dias choquei sobre meus vinte preciosos ovos de gansos selvagens. Isto é, eu mesmo só choquei durante os dois últimos dias, os anteriores eu confiara para uma gansa caseira gorda e branca e uma perua igualmente branca e gorda, que faziam isso com muito mais gosto e melhor do que eu. Somente nos dois últimos dias é que retirei os dez ovos de um branco opaco da perua e os coloquei na minha chocadeira. (A gansa caseira teria que dar conta ela mesma dos outros dez.) Eu queria acompanhar com exatidão o sair da casca dos filhotes. E agora chegara o momento.

Coisas importantes devem acontecer dentro de um ovo como esse do ganso selvagem.

Coloca-se o ouvido nele, ouve-se um crepitar e um mexe-mexe, e agora sim, agora você pode ouvir claramente o assovio baixinho de um “Pip”. Somente uma hora mais tarde é que aparece um buraco no ovo, e aí vemos a primeira coisa que aparece da nova ave: a ponta de seu nariz com o respectivo dente de ovo.

O movimento da cabeça com o qual empurra esse dente de ovo contra a casca de ovo não ocasiona somente o estalar da casca, faz também com que o corpo enroscado da avezinha que se encontra no seu interior faça um movimento e vagarosamente, como em solavancos se vire em torno do eixo mais longo do ovo. Portanto, esse dente de ovo movimenta-se num “círculo paralelo” no interior da casca do ovo, abrindo nessa linha uma série de buracos, até que finalmente, quando o círculo está completo, com um esticar do pescoço a ponta cega do ovo pode ser levantada.

Devagar e com muito esforço o longo pescoço se liberta, mesmo que ainda mal consiga sustentar a cabecinha. O pescoço ainda permanecerá entortado para baixo, na posição embrionária em que foi formado e permaneceu desde sua existência.

Demora várias horas até que as articulações se esticam e se tornam flexíveis, os músculos se fortificam e os órgãos do labirinto que respondem pelo equilíbrio, funcionam, até que o pequeno gansinho descubra que existem um acima e um abaixo e que consiga sustentar a cabeça livremente.

Essa coisa molhada saindo da casca parece muito feia e desperta piedade, principalmente nos parece muito mais molhado do que o é na realidade. Se o tocarmos, poderemos verificar que só está úmido. Essa impressão de sua penugem estar molhada e colada só acontece porque está envolvida por um fino invólucro que não é mais espesso que um fio de cabelo. Mas, todos os pelinhos estão colados uns aos outros, como mechas, por causa desse líquido albuminoso, ficando com um volume mínimo dentro do invólucro. Quando esse seca e cai como um pó, então a penugem que estava presa se liberta. Essa auto-secagem na verdade não ocorre porque desde o princípio estão secos devido à proteção do invólucro contra o líquido do ovo. O arrebentar desse invólucro da penugem é causado naturalmente pelos movimentos da jovem ave que o ativa ao esfregar-se contra as penas da mãe chocadeira e dos irmãos. Quando esse esfregar não pode ser feito, como no meu primeiro ganso selvagem na chocadeira, esse invólucro permanece por um período mais longo que comumente. Num caso como esse pode se fazer uma mágica surpreendente. Tome-se numa mão um chumaço de algodão embebido de óleo e na outra a avezinha, e com cuidado passe-se o algodão muito de leve contra a penugem. O invólucro se desfaz em pedaços mínimos, semelhantes à caspa dos cabelos, e o gansinho se transforma de forma mágica: por onde o chumaço de algodão vai passando aparece uma floresta de fina penugem de um dourado acinzentado, e em poucos segundos tem-se em lugar do pelado, úmido e colado bichinho, uma linda e redonda bola de penas na mão que tem o dobro do volume da outra.

Portanto, meu primeiro gansinho cinzento havia nascido e eu esperava que sob o aquecedor elétrico, que substituía a barriga aquecedora da mãe, se fortificasse suficientemente para poder levar a cabeça erguida e fosse capaz de dar alguns passos.

Com a cabeça inclinada ele me olhava com seus grandes olhos escuros. Como a maioria das aves, o ganso cinzento também fixa com um olho s6 quando quer ver com exatidão. Durante longo tempo, muito longo, o filhote de ganso me olhava. E ao fazer um movimento ou falar algo rapidamente sua atenção tensa soltou-se e o minúsculo ganso “cumprimentara”: com o pescoço alongado e a nuca esticada disse muito rapidamente e em polissílabos o típico som dos gansos cinzentos, que nos gansinhos entoa como um assovio fino e solícito. Eles cumprimentam da mesma forma como os gansos cinzentos adultos e como o farão milhares de vezes na vida. Ele, porém, cumprimentava como se já “tivesse” cumprimentado mil vezes da mesma forma. Mesmo o melhor conhecedor não teria reconhecido ter sido essa a primeira vez que fazia isso na vida. Eu também não sabia ainda nada sobre as duras obrigações que me acarretaria ter resistido à vistoria desses olhinhos escuros e com uma distraída palavra ter motivado esta primeira cerimônia de cumprimento.

A saber, eu pretendia confiar esses dez gansinhos que tinham sido chocados pela perua à nossa já mencionada gansa caseira, que não teria sido capaz de chocar mais de dez ovos, mas que poderia muito bem criar vinte gansinhos. Quando meu gansinho estava “pronto”, três outros já haviam saído do ovo debaixo da gansa. Então transportei meu filhote para o jardim onde a gorda branca se encontrava sentada dentro da casa de cachorro donde enxotara Wolfi, o primeiro, e dono legítimo. Coloquei o meu filhote de ganso bem debaixo da quente e fofa barriga da velha, e fiquei seguro de ter feito o que era certo. Mas a verdade é que eu tinha ainda muito que aprender.

Passaram-se alguns minutos comigo em feliz meditação, sentado defronte do ninho de gansos, quando entoou debaixo da gansa, como que perguntando, um leve assovio: “Wiwiwiwiwi”? Objetiva, a fim de acalmá-la, a velha gansa respondeu com o mesmo som, só que em seu tom: “Gangganggangganggang”. Porém em lugar de acalmar-se como teria feito qualquer outro filhote de ganso sensato, o meu apareceu rapidamente saindo por debaixo das quentes penas, olhou com um olho para cima, bem no rosto da madrasta, e chorando saiu correndo dela: “Pfup, pfup... pfup...” Mais ou menos assim é que soa o “assobio do abandono” de um gansinho, comum para quase todos os filhotes fugidos do ninho.

Completamente ereta, assoviando sem cessar, lá estava a pobre criança entre mim e a gansa. Então, fiz um movimento e o filhote parou de chorar, e com o pescoço alongado e cumprimentando, veio até mim: “Wiwiwiwi...” Isso era realmente comovente, mas eu não estava com intenções de fazer o papel de gansa-mãe. Portanto, tomando o filhote nas mãos recoloquei-o novamente debaixo da barriga da velha e saí correndo. Não havia dado nem dez passos quando ouvi atrás de mim: “pfup... pfup... pfup.” e o filhote desesperado vinha correndo. Ficar de pé ainda não conseguia, sentava-se sobre os calcanhares, seu andar era ainda inseguro e bamboleante. Mas, em virtude da força do desespero já conseguia dominar uma espécie de corrida rápida com seus movimentos.

Entre alguns galiformes essa seqüência surpreendente, porém, conveniente, do amadurecimento de várias formas de movimentos é ainda mais acentuada. Principalmente no perdizes e faisões conseguem correr muito mais cedo do que andar devagar ou ficarem parados quietos.

Poderia ter removido pedras o modo como o pobre filhote com a voz falhada choramingando, entre tombos e cambalhotas, mas com uma rapidez surpreendente e com uma segurança cujo sentido não deixava dúvidas, vinha correndo atrás de mim: eu era sua mãe e não a gansa branca! Suspirando, aceitei minha cruz e levei-o de volta para casa. Apesar de então só pesar 100 gramas, eu sabia muito bem quanto peso, trabalho honesto e tempo me custaria para carregá-lo com dignidade.

Procedi como se tivesse eu adotado o pequeno gansinho, e não ele a mim.

Com um batizado festivo o filhote foi denominado Martina.

O resto do meu dia decorreu como o fazem as gansas mães. Fomos até um prado com relva fresca para pastar, e até consegui convencer meu filhote que urtiga com ovo picado é uma comida deliciosa. Do seu lado, ele também me convenceu de que, pelo menos naquele momento, era impossível deixá-lo só um segundo que fosse. Entrava em pânico e começava a chorar com um choro de partir o coração, então depois de algumas tentativas desisti e construí um cestinho a tiracolo, no qual podia transportá-lo o tempo todo comigo. Quando dormia, pelo menos eu podia movimentar-me livremente.

Nunca dormia longamente de uma só vez, o que não notei no primeiro dia. Mas durante a noite. De noite preparei para meu filhote de ganso um maravilhoso berço com aquecimento elétrico, que já havia servido a alguns filhotes que fugiram dos ninhos e que substituía a barriga aquecedora da mãe. Já tarde da noite, ao colocar minha Martina debaixo do cobertor elétrico, ouvi-a emitir o assobio rápido, como um “Wirrrrr”, que nos gansinhos expressa o adormecer. Então coloquei a caixa com o berço aquecido num canto do quarto e rastejei até a minha cama. Quando eu já estava quase adormecendo ouvi Martina sonolenta e baixinho emitir um “Wirrrrr” novamente. Não me mexi. Então ressoou mais alto, como que perguntando a expressão: “Wiwiwiwi”? Selma Lagerloef, cujo livro sobre o pequeno Nils Holgerson tanto alegrou minha infância, interpreta o significado desse som expressivo com uma sensibilidade maestral, traduzindo-o por “Eu estou aqui? Cadê você? – Wiwiwiwiwi? Aqui estou eu, cadê você?” Eu continuava sem responder e me enrolava mais entre meus travesseiros com a esperança que o filhote adormeceria novamente: mas, qual nada, Wiwiwi- entoava com mais força acompanhado do assobio ameaçador do abandono com o canto dos lábios abaixados e o beiço inferior arredondado, o que nos gansos se expressa pelo pescoço alongado e as penas da cabeça encrespadas. E daí a um momento começou forte e penetrante: pfup, pfup, pfup... Então tive que sair da cama e ir até à caixa. Martina recebeu-me aliviada, cumprimentando-me com o Wiwiwiwiwiwiwi. Parecia não querer parar tamanho era seu alívio de não encontrar-se sozinha na noite. Com cuidado recoloquei-a debaixo do cobertor elétrico: Wirrrrr, wirrrrr. Como devia ser, logo adormeceu e eu fiz o mesmo. Porém mal havia passado uma hora, mais ou menos às dez e meia, ressoou novamente o Wiwiwiwie, tal como da primeira vez, tudo decorreu da mesma forma. Às onze e quarenta e cinco novamente, à uma outra vez. Às duas e quarenta e cinco decidi-me a efetuar uma modificação na arrumação da experiência colocando o berço junto da cabeceira da minha cama. E quando às três e meia ressoou novamente a conhecida pergunta “Eu estou aqui, cadê você?”, respondi com um sotaque ruim na língua dos gansos: Gangganggang batendo levemente no cobertor de aquecimento. Wirrrr, respondia Martina, já estou dormindo, boa-noite. Rapidamente, aprendi a responder com um gangganggang, sem acordar. Acho que até hoje se alguém me perguntar com um Wiwiwiwi quando durmo pesadamente, sou capaz de responder com um gangganggang.

De manhã cedo, ao clarear, nem meu gangganggang, nem as palmadinhas no cobertor davam mais resultado. Às primeiras luzes do dia Martina notara que o cobertor não era eu, e então chorando queria vir para junto de mim. O que fazemos quando nossos queridos recém-nascidos começam a berrar às quatro e meia? Certo, rapidamente o pegamos e colocamos junto a nós na cama, pedindo aos anjos que durma ainda pelo menos uns quinze minutos. E é assim que acontece... Satisfeito você adormece novamente até sentir algo frio e úmido ao seu lado... Essas conseqüências desastrosas nunca ocorreram com minha Martina. Enquanto o gansinho se encontra na condição psicológica “de estar debaixo da mãe”, ele fica seguramente limpo. Porém se ele acorda e quer levantar, terá que ser tirado rapidamente da cama.

Martina era no todo uma criança maravilhosa. O fato de não poder ficar a sós não era teimosia. Temos que entender que para um filho de ave na natureza livre, estar só significa morte certa. Biologicamente é certo que um cordeirinho desgarrado assim não pensa em comer, beber ou dormir, mas gasta até o último alento de energia até à exaustão, em gritos de socorro que o ajudem talvez a reencontrar a mãe.

Possuindo-se vários jovens filhotes de gansos selvagens que estejam um pouco acostumados uns com os outros, com alguma disciplina será possível acostumá-los a ficarem a sós. Um filhote solitário, porém, iria matar-se de choro.

Essa profunda e instintiva aversão à solidão fazia que Martina se amarrasse à minha pessoa. Ela me seguia por todas as partes e causava-lhe grande satisfação quando eu trabalhava na minha mesa de escritório e ela podia ficar deitada debaixo da minha cadeira. Ela não aborrecia, bastava que eu fizesse um resmungo inarticulado, em resposta à sua expressão sonora que me perguntava se eu ainda estava ali, com vida. De dia ela fazia isso de minuto em minuto, durante a noite de hora em hora. Eu gostaria de ver um ser humano – ou melhor: nem quero conhecê-lo – que não ficasse enternecido pela afeição de um filhote de ganso como esse. Era como uma Salix caprea movediça que, em passos medidos e a cômica distinção característica dos gansos, vem andando atrás de você, ou, se você andar apressado, vem correndo com as asas abertas. Comovente, mas ao mesmo tempo irritante como o berrar de um recém-nascido é o assovio do abandono, que ressoa, assim que você sair do quarto, mesmo se for por um só momento; ainda mais emocionante, mas sem irritar é o cumprimentar itenso sem fim, e a imensa alegria quando você reaparece. Na carinhosa dependência de um filhote de ganso, a coisa mais bonita é poder-se andar livremente na natureza com o animal, ficar em contato íntimo com essa criatura selvagem, que ainda não foi domada e poder observá-la.

Como por amor a Martina eu tinha que fazer o papel da gansa-mãe, nem tentei, como havia pretendido antes, colocar junto da gansa doméstica os outros nove gansinhos que haviam saído debaixo da perua, nos dois dias seguintes. Dez pequenos gansinhos cinzentos não requisitam mais tempo do tratador do que um só, e isso porque deixá-los a sós, é bem menos complicado.

Surpreendentemente, Martina não encontrou muita fraternidade nos nove, apesar de ficar bastante com eles, principalmente durante o dia, em passeios comuns. Depois de algumas lutas no início ela foi aceita como uma irmãzinha pelos gansinhos, porém de sua parte ela se importava pouco com eles, não sentindo falta deles quando não se encontravam por ali e estando sempre disposta a sair sozinha comigo abandonando os outros. Apesar de os outros nove também me considerarem sua gansa-mãe, do mesmo modo que Martina, eles eram tão unidos entre si como eram ligados à minha pessoa. Isto é, só ficavam felizes e quietos estando entre si e juntos de mim. No começo tentei levar somente dois ou três comigo e Martina em nossos passeios. Isto porque, para alcançar distâncias maiores, como passar pela rua da aldeia que leva até o rio Danúbio, eu colocava meus gansinhos num certo que carregava comigo. Além do mais, como três ou quatro animais bastassem para as minhas observações, eu teria preferido poder deixar a maioria em casa. Isso, porém, demonstrou ser impossível,porque essa minoria separada do grupo de irmãos ficava o tempo todo inquieta e amedrontada e, apesar da minha presença, sempre tendia a expressar a sensação de abandono com os seus sibilos e ficavam parados, recusando-se a virem juntos.

Essa reação pela falta dos irmãos era menos pessoal do que grupal. Se eu levasse a maioria comigo, me acompanhavam sem hesitação e ficavam quietos. Mas, os que ficavam em casa quase morriam de tanto chorar. Por isso eu tinha que levar ou a Martina sozinha ou os dez comigo em meus passeios. Quando dois anos depois criei novamente um bando de pintinhos, já sabendo disso, só tomei quatro sob meus cuidados.

É inacreditável quanto tempo passei junto de meus filhotes no meu primeiro verão de ganso e mais inacreditável ainda o quanto aprendi com eles. Ciência feliz essa onde a maior parte da pesquisa consiste em ficar nu e selvagem entre um bando de gansos selvagens nas margens do Danúbio, nadando e rastejando com eles.

Sou uma pessoa extremamente preguiçosa, tão preguiçosa que sou um muito melhor observador do que pesquisador. Na realidade só trabalho sob obrigação dos pesados imperativos categóricos de Kant, plenamente contrários à minha tendência natural. O maravilhoso dessa vida e trabalho de observação pura de animais vivendo na selva é que os próprios animais são admiravelmente preguiçosos. Essa pressa imbecil de trabalho que existe no moderno homem civilizado, que por isso não encontra tempo nem para ter uma verdadeira cultura, é totalmente desconhecida dos animais. Mesmo as abelhas e as formigas, símbolos de aplicação, passam a maior parte de seus dias num dolce far niente, só que não podemos “ver” essas hipócritas, porque permanecem em suas casas quando não estão trabalhando. Animais, além disso, também não se deixam pressionar. Se alguém quiser conhecer gansos selvagens, terá que viver com eles; e, querendo viver com eles, terá que se adaptar ao seu ritmo de vida.

Um ser humano que por natureza não possui essa divina preguiça, não “consegue” isso. Um homem de constituição ativa e aplicada ficaria maluco se fosse obrigado a passar um verão inteiro vivendo como um ganso entre gansos, como fiz eu (com intervalos). Pelo menos a metade do dia os gansos selvagens passam deitados, quietos, fazendo digestão. Três quartos da outra metade necessitam para pastar. As outras atividades de cuja observação se depende, preenchem no máximo um oitavo do tempo que passam acordados de dia, nos intervalos entre o pastar e a digestão. Gansos selvagens seriam animais muito enfadonhos, se o que fazem durante esse período de um oitavo de seus dias, não fosse tão interessante.

Se você ficar vagando com um bando de gansos selvagens às margens do Danúbio poderá preguiçar com a consciência muito tranqüila, porque estará obrigando a passar sete oitavos do dia deitado, tomando sol. Sua câmara fotográfica, porém, deverá estar armada e ao seu alcance, mas nada o obrigará a ficar prestando atenção às aves o tempo todo; isso porque a audição já treinada, descobre logo, nas expressões sonoras, se os animais dormem ou param de pastar para se dedicarem a coisas mais interessantes. É claro que enquanto os gansinhos são ainda pequenos e medrosos não largam quem está com ele e é fácil forçá-los a nos acompanharem com um simples afastar chamando-os. Caso se conheçam os sons de expressão do ganso cinzento e se consiga imitá-los de uma forma parecida, é possível conseguir que um bando de gansos já adultos e independentes, saia de um lugar determinado, levante vôo ou faça qualquer outra coisa. Mas, tem que ser cuidadoso o uso de tais influências, não pode ultrapassar além daquilo que os gansos-pais fazem nesse sentido com seus filhotes. Pequenos gansinhos se cansam facilmente não só física como psiquicamente se não forem deixados suficientemente em paz e sossego. Sem dúvida, eu também fatiguei Martina demais nos primeiros dias de vida, e por isso seu crescimento ficou prejudicado e ela continuou magra e nervosa. Jovens gansos já maiores, nos quais o medo de ficar só já diminuiu, não se deixam forçar nesse sentido, ficam simplesmente atrás e começam a comer. No entanto, mesmo assim, temos que ser econômicos em relação a eles com todas as experiências sonoras ou outras, principalmente porque então apagamos e cegamos exatamente as reações que queremos examinar. Um exemplo disso: os gansos têm uma reação inata para o som dos pais que indica que pretendem mudar de lugar. Essa expressão sonora é facilmente reproduzível pelo tratador, o qual pela imitação, pode forçar os gansos a acompanharem-no. Se ele, porém, fizer isso “demais”, isto é, com muito maior freqüência do que acontece normalmente na vida do ganso, acaba cansando essa reação.

Como conseqüência os animais deixam de considerar essa expressão sonora. Assim se aniquila, através de um “adestramento negativo”, exatamente esta forma inata e herdada de reação que se pretendia pesquisar. E é para evitar isso que se precisa ter realmente o que chamam de paciência animal.

Especialmente interessante nos gansos cinzentos são os sons com que eles se expressam que vão embora, nadar ou voar. Já os pequeninos têm uma reação inata para os menores detalhes desse vocabulário bastante complicado. O som mais comum, o conhecido grasnar rápido e baixo dos gansos, entoa também de tempo em tempo quando os animais estão em sossego, se estão ou passeando devagar. Ele ressoa de uma forma especial, quebrada por causa dos tons agudos que a acompanham, e têm seis a dez sílabas. O número das sílabas e o vigor dos tons agudos são paralelos nesse som de voz normal, mas ficam em proporção indireta ao volume do som. Quanto mais sílabas tem o grasnar, mais agudo será o tom e mais baixo o ruído. Quando essas três características aparecem fortemente, isso significa absoluta satisfação, os animais não tendem a deixar tão cedo o lugar. Esse grasnar polissilábico em tom agudo, mas entoado bem baixinho, na linguagem humana quer dizer: aqui está bem, deixe-nos ficar aqui; acrescido do contato sonoro: eu estou aqui, e você ainda está aqui também?

Na medida como vai aparecendo no ganso o desejo de mudar de lugar, vai-se modificando o tom de seu contato sonoro, e de tal forma que o número de sílabas diminui e os tons agudos desaparecem e o grasnar aumenta de volume. Um grasnar de seis sílabas já corresponde a uma marcha lenta mas contínua, isso por exemplo em pastos escassos onde entre um pé e o outro tem que dar mais do que uma ou duas passadas. Com cinco sílabas já domina uma disposição clara para marchar, é raro que catem ainda um pé de plantinha, os animais pensam principalmente em andar para frente. Um grasnar polissilábico significa um motivo forte para mudança de lugar, nesse caso o ganso mantém o pescoço quase sempre alongado e tenso. Trissílabo quer dizer marcha rápida, o pescoço fica extremamente alongado e já avisa o aparecer da “disposição para o vôo”. O som dissilábico, baixo, mas em volume muito alto, “ganggang, ganggang”, quer dizer, sem nenhum equívoco, que o ganso vai levantar vôo no próximo momento.

Não havendo “nenhuma” disposição de vôo, mas sim o desejo de mudar de lugar, ou a pé ou a nado, ele dispõe de uma expressão sonora que só expressa isso e nada mais. Mais ou menos entre um grasnar trissilábico ou polissilábico, exatamente quando pudesse ser levantada a suspeita de uma disposição para voar, o ganso emite então um grito trissilábico de um tom metálico, cuja sílaba média é fortemente acentuada e cujo tom fica umas seis notas acima que as outras duas, mais ou menos como “gangingang”. Pais que guiam filhotes que ainda não são capazes de voar, com freqüência e compreensivelmente expressam a disposição de mudar de lugar com acentuação da intenção de “não” voar. Esse grito é freqüentemente ouvido, emitido por gansos caseiros que guiam os filhotes, tornando-se muito cômico para um conhecedor, pois esses gordos companheiros de qualquer forma mal conseguem voar. :a por isso que esse “protesto” contínuo de que fará a mudança de lugar a pé em vez de voando é completamente supérfluo. Mas, como todas essas expressões são puramente instintivas e herdadas, é claro que os animais não têm noção disso.

Como já foi dito, esse compreender “instintivo” desse vocabulário de contatos em qualquer ganso cinzento é inato e herdado. Já os filhotes de um ou dois dias reagem logo a todos os detalhes descritos. Se deixarmos o som tornar-se mais forte e com menos sílabas, os filhotes param de pastar, levantam as cabecinhas e o bando todo, “na posição de andar”, começa a se deslocar para frente.

Especialmente graciosa e fácil de ser demonstrada é a reação dos filhotes para o “gangingang”. É interessante notar que o gansinho interpreta para si esse som dos pais, especialmente quando fica retardado na marcha, atraído pelo sabor especial de alguma plantinha do pasto. Nesses casos o “gangingang” parece tocá-los como uma chicotada, e com a rapidez máxima e as asinhas abertas correm atrás dos pais ou do substituto deles. Essa reação permitiu-me uma pequena trapaça com a minha graciosa Martina.

Apesar de seu nome não ter sido derivado, como no caso de Tschok, do contato sonoro de atração da sua espécie, nós encontramos para Martina o mais bonito nome-chamariz, que qualquer ave jamais teve em Altenberg: isto é, se entoássemos seu nome no tom e colorido do som do ganso cinzento, “gangingang”, acentuando fortemente o “i”, então com segurança causávamos nela a reação descrita, e Martina aparecia correndo como um cavalo esporado. Principalmente caçadores e cinófilos é que se surpreendiam com o “apelo” que eu havia ensinado ao meu pequeno gansinho que mal completara uma semana. Eu só tinha que cuidar que nenhum outro gansinho “destreinado” se encontrasse ao alcance, porque então viriam todos como se tivesse apertado um botão elétrico.

Da mesma forma como a resposta certa para todas as variedades de expressões sonoras é inata no filhote de ganso, também o é a reação ao som de advertência. Esse consiste em um “gang” monossilábico, na maioria das vezes baixo e nasal, no qual entoa uma espécie de r, e por isso que em letras talvez se expresse melhor esse som com um “ran”. Esse som rouco imita-se do melhor modo entoando a sílaba e inalando ar ao mesmo tempo. Para esse som todas as cabeças de gansos se levantam e o grasnar quase sempre contínuo pára de uma só vez. Se expressarmos esse som mais alto, os gansos adultos entram na disposição de vôo e procuram alcançar um lugar onde consigam ter uma visão ampla e livre, e possam facilmente levantar vôo. Filhotes de ganso, porém, correm para junto das mães ou para o substituto humano e se apertam em montinhos fechados procurando proteção.

Essa disposição amedrontada perdura nos filhotes até ser dado o sinal de fim de alerta. Portanto, os gansos-pais não precisam advertir uma segunda vez, para manter os filhotes quietos, em estado de alerta, podem, portanto, concentrar-se com todos os sentidos no perigo. Quando esse passa, segue o sinal de fim de alerta através de um grasnar baixo, para o qual os filhotes regularmente reagem com os pescoços alongados em uma cerimônia de cumprimentos.

Tão rapidamente como a primavera se transforma em verão, esse gracioso novelo de fina penugem se toma aquela bela ave cinzenta de asas prateadas. Como é encantadora essa transformação de um para outro, como são comoventes as formas desarmônicas entre a criança e o jovem, os pés grandes demais, as articulações fortes e os movimentos desajeitados dos anos da adolescência, que no ganso cinzento, no entanto, se resumem em algumas semanas! Quão lindo é o momento em que alcança a nova harmonia da ave adulta, quando as asas enrijecem e são capazes de se abrirem para o primeiro vôo.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

VI - O anel do Rei Salomão

Assim está escrito: o rei Salomão falava com as bestas, os pássaros, os peixes e as minhocas. Isso eu também consigo, apesar de não com tantos animais como o velho rei fazia. Admito mesmo ser-lhe nisso inferior. Mas eu consigo falar com algumas espécies que conheço bem, não precisando de nenhum anel mágico. Nesse sentido, sou superior ao velho rei, que sem o seu anel não teria compreendido a língua nem de seus animais mais íntimos. E quando já não possuía mais o anel, seu coração endureceu contra o mundo animal. Dizem que certa vez, irado, Salomão lançou fora o seu anel mágico depois que um rouxinol lhe revelou que uma de suas novecentas e noventa e nove esposas amava um homem mais jovem. Pelo menos é assim que nos conta J. V. Widmann na sua encantadora lenda “O santo e seus animais”.

Tudo isso pode ter sido muito sábio ou muito errado da parte de Salomão; da minha parte acho muito antiesportivo usar anéis mágicos na relação com os animais.

Sem mágica alguma, esses seres vivos nos recontam as histórias mais belas, pois são verdadeiras. E a beleza da natureza é sempre ainda mais bela do que tudo que os nossos poetas, os únicos verdadeiros mágicos, jamais poderiam criar.

Não é nada demais entender o “vocabulário” de alguns animais. Também podemos falar aos animais, claro que dentro do limite das possibilidades de nossos meios de expressão e na medida que os animais estão dispostos a entrar em contato conosco. No caso, porém, temos de cuidar de não nos confundirmos, Como certa vez ocorreu ao meu amigo Alfred Seitz. Um dia, num princípio de verão, filmávamos os nossos gansos cinzentos nas várzeas do Danúbio. Devagar, íamos passando pela paisagem virgem de água, salgueiros e caniços, devagar, muito devagar, porque nossos passos normais correspondiam à velocidade máxima dos treze novos Anas platyrhynchos, patos selvagens nativos da nossa região, e dos nove pequenos gansinhos cinzentos que nos seguiam em longa fila. Finalmente alcançamos um lugar pitoresco que servia para as filmagens de Alfred. Ele foi logo se dedicando ao seu trabalho e eu me preparava para a orientação científica do empreendimento. No momento isso se resumia em ficar tomando sol sobre o gramado duma pequena ilhota. Alfred, com a água chegando até a cintura, estava de pé e com uma paciência de animal espreitava com o olho e a câmara.

O sol queimava, as libélulas zumbiam e os sapos coaxavam. Aos poucos eu fui adormecendo e só ouvia, como se viesse de muito longe, a voz de Alfred brigando com os patos que sempre nadavam na direção da imagem na hora errada. Enquanto eu ainda lutava dificilmente entre a decisão de me levantar para atrair os patinhos de lá, ouvi Alfred irritado, de repente dizer: “Ranggrangang, Rang… ah, quero dizer, Qué, qué, qué…”. Foi aí que ele se confundiu, falando aos patos na língua dos gansos! Meu amigo Alfred pronunciara os sons com o acento perfeito de ganso, ou melhor, de pato. Por isso o seu “quero dizer”, que intercalara, ressoou de uma forma tão cômica.

Uma língua, no verdadeiro sentido da palavra, os animais não possuem. Qualquer indivíduo que pertença a uma espécie de animal superior traz inato, dentro de si, um completo código de sinais e movimentos de expressão, principalmente se viver em sociedade, como a gralha ou o ganso cinzento. Também traz inata a capacidade de emitir tais sinais, como também de “entendê-los” corretamente, isto é, responder de forma adequada para a preservação da espécie. Quando se torna claro com esses conhecimentos, sustentados por muitas observações e experiências, então desaparece a grande parte da semelhança que, ainda que observado de forma superficial, existe entre os “meios de comunicação” dos animais e da língua humana. Essa semelhança diminui ainda mais pelo fato de o animal não ter uma “finalidade” consciente de influenciar um semelhante ao emitir seus sons ou movimentos de expressão. Mesmo gansos cinzentos, gralhas ou patos selvagens criados e mantidos isoladamente, emitem por si mesmos todos esses sinais no momento em que são tomados por tal disposição. Esse procedimento então nos parece obrigatoriamente muito “mecânico”, isto é, muito pouco parecido com o humano.

No comportamento do homem também temos sinais de mímica que transmitem forçosamente uma disposição: você sentirá vontade de bocejar se alguém ficar bocejando diante de você, só para dar o exemplo mais comum. É claro que esses sinais, como, por exemplo, se evidencia na disposição de bocejar do ser humano, são estímulos relativamente fortes e de fácil assimilação e cujo efeito de origem não me parece incompreensíve1. Porém em geral não são necessários sinais tão rudes e evidentes para transmitir uma disposição. Pelo contrário: tal proccsso de transmissão se caracteriza por responder a movimentos de expressão muito finos, discretos e que muitas vezes escapam a uma observação consciente.

Esse misterioso aparelho receptor e transmissor, que é o mediador do transporte inconsciente desses sentimentos e' afeições, é antiqüíssimo, muito mais velho do que a humanidade. Em nós ele regrediu na proporção em que desenvolvíamos nossas palavras. O homem não necessita do menor movimento para expressar sua intenção, ele sabe dizê-la. Gralhas e cachorros, porém, são forçados a “ler nos olhos um do outro” o que o outro fará no momento seguinte. É por isso que esse aparelho receptor e transmissor nos animais superiores e que vivem em sociedade é muito mais desenvolvido, e especializado que em nós, homens. Todos esses sons de expressão nos animais, como o “Kiu” e o “Kiá” das gralhas, ou, conforme sua disposição, o som mono ou polissilábico do ganso cinzento, não são comparáveis às nossas palavras. Isso só seria possível com as exteriorizações de nossas Vontades,como o bocejar, o franzir da testa, um sorriso ou algo semelhante, enfim, o que expressamos inconscientemente e já está inato e é compreendido do mesmo modo. Nas diversas “línguas” de animais as “palavras” são interjeições.

É possível que o ser humano também disponha de inúmeras variedades de mímica inconsciente, mas nenhum Josef Kainz ou Emil Jannings seria capaz de se fazer entender claramente só com a mímica de que gostaria de andar a pé ou preferiria voar como o ganso cinzento é capaz de fazer, ou como a gralha, que com uma leve insinuação consegue indicar se quer voltar para casa ou voar para mais longe. Assim, o aparelho transmissor dos animais é consideravelmente mais potente que o do homem. O mesmo pode ser dito sobre o receptor das transferências de disposição, o qual não só consegue distinguir um enorme número de sinais como também responde à transmissão de muito menor energia do que o nosso.

É impressionante como os animais entendem e aplicam certos sinais mímicos, completamente imperceptíveis para os homens. Se uma gralha que se encontra em um bando à procura de alimento, levanta vôo para pousar na macieira mais próxima e limpar as penas, nenhuma outra ave toma conhecimento disso. Porém, se ela levantar vôo para afastar-se a uma distância maior, dependendo da “autoridade” de que desfruta no bando, será acompanhada pelo consorte ou de um grupo de gralhas, ainda que não tenha emitido nenhum “Kiá”.

Seja como for, um profundo conhecedor de gralhas pode reconhecer sinais muito sutis e entendê-los, contudo, nem sempre isto é possível. Já o “receptor” dos cães ultrapassa nossas capacidades análogas. Qualquer conhecedor de cachorros sabe com que inacreditável segurança um fiel cão olha o dono se este sai do quarto para qualquer finalidade ou se sai para levá-lo ao tão esperado passeio. Alguns cachorros, porém, conseguem fazer coisas incríveis nesse sentido. Minha cadela pastor-alemã Tito, a tetravó do meu cachorro atual, sabia exatamente por vias “telepáticas” quem e quando alguém me irritava. Era impossível evitar que ela, com suavidade, mas com segurança absoluta, o mordesse nas nádegas. Especial perigo corriam os senhores de mais idade e autoritários que numa discussão tomavam a conhecida atitude do “de qualquer maneira você é jovem demais”: caso o estranho se expressasse assim, logo teria de segurar assustado o lugar onde Tito o castigara. Para mim ficou totalmente obscuro o fato de isso funcionar com absoluta segurança mesmo se a cadela estivesse debaixo da mesa, isto é, sem ver o rosto ou a expressão do homem; como é que ela sabia quem era o adversário da minha opinião?

É claro que essa sutil compreensão de cada disposição do dono não é “telepatia”. Alguns animais possuem essa capacidade surpreendente de captar movimentos íntimos que escapam aos olhos humanos. E um cachorro que cuida com uma concentração máxima em servir o dono, e ao pé da letra, “lê em seus lábios seus desejos”, consegue coisas incríveis. Nesse sentido os cavalos também são famosos. Talvez seja por isso oportuno relatar algumas peripécias que trouxeram certa fama a vários animais. Alguns talvez se lembrem do “João inteligente”; também existiram cavalos pensadores que resolviam raízes cúbicas e não devemos nos esquecer do cachorro milagroso Rolf, um terrier que chegou a ditar seu testamento à dona.

Todos esses animais que calculam, discursam e pensam, “falam” através de sinais como batidas ou sons latidos codificados conforme uma espécie de alfabeto morse. Ao primeiro olhar essas apresentações são espantosas. Você será convidado a tirar a prova por si mesmo. Você será colocado defronte ao cavalo, bassê ou qualquer outro animal. Então você pergunta quanto são dois mais dois; o bassê o olhará firmemente e latirá quatro vezes. Ainda mais surpreendente nos parece o cavalo que nem nos parece considerar ao dar suas batidas; cavalos conseguem enxergar o que não fixam, pela chamada visão indireta, com enorme precisão, até os menores movimentos. É você mesmo que, através de sinais mínimos e involuntários, fornece o resultado certo. Se, porém, você não conhece a solução do problema, o pobre animal continuará a latir ou a dar batidas, esperando em vão o sinal que lhe diz que já pode parar. Mas muito poucos homens são capazes, através de um autocontrole e auto-observação, de evitar que transmitam esses sinais inconscientes e indesejáveis.

Certa vez um colega meu provou com um bassê que se tomara muito conhecido e pertencia a uma senhora solteirona que o homem é quem encontra a solução e a transmite ao animal pensante. O método era pérfido: na parte dianteira de um quadrinho, constituída de várias camadas de papel transparente, estava escrito em caracteres fortes números de uma adição simples; por trás, porém via-se transparecer uma outra pela luz que a atravessava. Quando a dama apresentava esse quadrinho para seu cão, ele só latia respondendo as soluções das questões vistas por sua dona e não as que ele teria que ter lido. No final, meu amigo apresentou ao bassê um papel que estava impregnado pelo cheiro de uma fêmea no cio. Excitado, o bassê farejava, gania e abanava o rabo. Ele sabia exatamente o que cheirava! Mas sua dona não. Então quando ela perguntou ao seu cachorro que cheiro tinha o papel, esse pelo morse respondera logo: “de queijo”!

Essa enorme sensibilidade de alguns animais de captar os mínimos movimentos de expressão, como a capacidade descrita do cachorro de notar sentimentos amigáveis ou estranhos que seu dono sinta em relação a outro ser humano, é naturalmente muito impressionante. É por isso que um observador ingênuo e que humaniza os animais chega a pensar que um ser que consegue adivinhar pensamentos tão íntimos e secretos deveria entender cada palavra que seu amado dono lhe falar. É que esquecemos que essa capacidade de entender movimentos expressivos desses animais sociais está tão desenvolvida exatamente porque eles não conseguem falar.

Nenhum animal fala algo com o propósito consciente de levar o semelhante a um comportamento definido. Todos os movimentos de expressão e sons transmitidos para o “entendimento” dos animais são expressos pela “emissora” como puras interjeições.

Quando seu cachorro o empurra com o focinho, choraminga, corre e arranha a porta, ou coloca as patas em cima do buraco de uma bica e olha em redor interrogando, ele faz algo que se assemelha muito mais à língua humana do que tudo que uma gralha ou um ganso cinzento jamais consegue “dizer”, mesmo possuindo sons tão compreensíveis, diferenciados e correspondentes à finalidade. O cachorro quer que você abra a porta ou a torneira, o que faz é consciente, uma influência com finalidade sobre o amigo humano; a gralha ou o ganso cinzento, porém, expressa inconscientemente sua disposição interior emitindo o som de Kiá e de Kiu, o sinal de atenção “fujam”; ela não consegue refrear o impulso e as diz da mesma forma, mesmo estando só.

Além disso, o que o cachorro faz é inteligente e estudado, mas o que as aves dizem é totalmente inato e herdado. Cada cachorro tem um outro método de se fazer entender pelo amo, e esse mesmo cachorro, conforme a situação do momento, usará de outros meios para alcançar sua meta. Minha cadela Stasi comera algo, certa vez, que lhe fez mal e por isso durante a noite ela sentiu necessidade de “sair do quarto”. Na época eu estava exausto e tinha um sono muito pesado; foi por isso que ela não conseguiu despertar-me com os sinais costumeiros e com os quais costumava expressar sua necessidade. Acho que ao empurrar-me com o focinho, choramingando, fez que eu me enrolasse mais ainda entre meus lençóis e travesseiros. Então, decidida, ela pulou em cima da minha cama e com as patas dianteiras me fez rolar do leito.

Não existe nas aves a capacidade de mudança nos movimentos de expressão em casos de adaptação a uma finalidade perseguida no momento.

É conhecido que papagaios e muitos corvídeos sabem “falar”, ou seja, imitar palavras humanas; às vezes pode ocorrer uma relação de idéias entre certas vivências e os sons. Essa imitação não é outra coisa que a conhecida “fazer troça” que encontramos em muitos pássaros cantores; o nosso nativo Hippolais icterina, o Lanius collurio, o pisco de peito azul e o estorninho são mestres nisso. Esses sons de troça que não são inatos, essas aves só emitem no “canto”, sem relação nenhuma com o significado de cada vocábulo. O mesmo ocorre com estorninhos, pegas e gralhas que conseguem se desenvolver bastante na imitação de palavras humanas.

Algo diferente ocorre, porém, no “falar” dos corvos maiores e principalmente nos papagaios grandes. No seu falar também encontramos algo involuntário e jocoso que se assemelha aos dos pássaros que espiritualmente lhe são inferiores, porém algumas expressões de corvos e papagaios se tomam estranhamente independentes: é evidente que existe uma certa relação quase (quase!) certa de idéias.

Muitos papagaios cinzentos e alguns do Amazonas dizem “Bom dia” só de manhã, e isto só uma vez e, portanto, adequadamente. Otto Koehler tinha um velho papagaio cinzento que se depenava totalmente e por isso vivia pelado; atendia pelo nome de “Abutre”. Não tinha nada de bonito, mas falar o tomava simpático. Dizia “Bom dia” e “Boa noite” com o sentido certo e se uma visita se levantasse para despedir-se, dizia com a voz grave e bonachona de um bebedor de cerveja: “Bem, até à vista.” Note-se bem, só quando alguém se levantava para se despedir realmente. Como cachorros que pensam, ele também estava preparado para os sinais transmitidos cientemente e que eram “para valer”; nunca conseguimos descobrir, porém, que sinais eram. Nunca conseguimos fazê-lo pronunciar a forma através de uma despedida fingida. Mesmo que a pessoa se retirasse e despedisse da forma mais discreta, na hora certa e como uma troça ouvia-se: “Bem, até à vista”.

O conhecido ornitólogo de Berlim, Coronel von Lukanus, teve também um papagaio cinzento que se tomara famoso pela força da memória. Junto de outras aves, Lukanus mantinha também um Upupa epops manso, que se chamava Hopfchen; o papagaio, que sabia falar muito bem, logo aprendera essa palavra. Essas aves de rapina não conseguem viver muito tempo em cativeiro, mas os papagaios sim. Depois de algum tempo Hopfchen tomou o rumo de tudo que é terrestre e o papagaio parecia ter esquecido seu nome; em todo caso nunca mais o repetiu. Conforme foi dito e escrito, depois de nove anos o Coronel Lukanus ganhou um novo Upupa epops e o papagaio ap vê-lo pela primeira vez, exclamou repetidamente: “Hopfchen... Hopfchen...

Essas aves são tão tenazes em conservar na memória o que aprenderam quanto lentas em aprender coisas novas. Qualquer um que quiser fazer um estorninho ou um papagaio aprender uma palavra nova sabe com que paciência deverá armar-se, e quantas vezes, incansavelmente, terá que repetir-lhe a palavra. Apesar disso, às vezes tais aves conseguem repetir uma palavra que ouviram casualmente uma só vez. Isso parece ser somente possível em “situações excepcionais” de máxima excitação; pessoalmente, só conheço duas observações garantidas.

Meu irmão teve durante anos um encantador papagaio manso, porém agitado e excepcionalmente dotado no falar, que se chamava Papagallo. Durante o período em que Papagallo viveu conosco em Altenberg, ele voava em liberdade como todas as outras aves. Um papagaio falante que voa de árvore em árvore emitindo palavras humanas é muito mais cômico do que um que fica sentado na gaiola fazendo o mesmo. Era irresistível ver Papagallo voando pela redondeza a gritar alto “onde está o senhor Doutor?”, às vezes realmente à procura do dono.

Ainda mais cômico, mas principalmente surpreendente nessa ave era o seguinte: Papagallo não tinha medo de nada e de ninguém além do limpador de chaminé.

Em geral, as aves se assustam facilmente com coisas que estão em cima, o que tem certa relação com o temor inato contra as aves de rapina que descem. Portanto, para elas, tudo que sobressai do céu transmite a sensação da “ave de rapina”. Quando a silhueta do homem preto, de uma escuridão assustadora e diferente dos outros homens, em pé sobre a chaminé, se desenhava contra o céu, Papagallo era tomado pelo pânico e, gritando alto, voava para muito longe a ponto de temermos por sua volta. Meses mais tarde, quando o limpador de chaminé voltou novamente, Papagallo encontrava-se pousado sobre o cata-vento e se aborrecia com as gralhas que queriam fazer o mesmo. De repente vi que ele foi ficando menor e temeroso espreitando para baixo, então levantou vôo gritando em tons agudos: “O limpador de chaminé está chegando, o limpador de chaminé está chegando.” Dali a um instante o homem de preto entrou pelo portão adentro.

Era pena, mas eu não conseguira mais averiguar claramente quantas vezes Papagallo vira o limpador de chaminé antes, e quantas vezes ouvira essa exclamação da nossa cozinheira anunciando sua chegada. Era sem dúvida a voz dessa dama que soava de suas palavras. Seguramente não pode ter sido mais do que duas a três vezes, e, em todo caso, uma só vez com um intervalo de meses.

O segundo caso que conheço, de uma ave “falante” que repetira depois de ouvir uma vez ou poucas vezes uma frase inteira era o de uma gralha cinzenta. O animal chamava-se Hansl e podia concorrer com o papagaio mais talentoso na parte do falar. Hansl havia sido criada por um ferroviário num lugarejo vizinho chamado St. Andrae-Woerden em total liberdade e se tornara uma ave vistosa e saudável, o que comprovava a capacidade de tratador de seu pai adotivo; ao contrário da opinião geral, gralhas não são nada fáceis de criar, e no trato que comumente recebem desenvolvem-se em aleijões como o Hans-Huckebein que Wilhelm Busch retrata tão sem compaixão. Certo dia, garotos da aldeia me trouxeram uma gralha cinzenta cujas asas e cauda estavam cortadas até o cotó que mal consegui reconhecer o belo Hansl. Comprei a ave como compro em princípio todos os pobres animais que me são trazidos pelos garotos da aldeia, parte por compaixão e parte talvez para encontrar algo verdadeiramente raro entre esses desgarrados. Então telefonei para o dono de Hansl, que confirmou que o pássaro sumira há alguns dias, mas que o tomasse sob meus cuidados até a próxima muda. Coloquei então a gralha no viveiro dos faisões e dei-lhe fortificantes para que, na muda já próxima, ganhasse penas e asas fortes e boas. Já nessa época em que o animal era um prisioneiro forçado, descobri que Hansl era um artista no falar. Quantas coisas eu ouvia! Principalmente, tudo que uma gralha mansa pousada numa árvore, junto da rua principal da aldeia, ouve dos garotos. Com um acento puro do sul da Áustria, Hansl declamava:

“Ei, escuta, venha cá, ora veja, ali está ele; ei, escuta, upa cavalinho, ora veja, ali está ele.” E assim por diante. Com alegria vi o gentil pássaro sarar depois da muda seguinte, e quando já estava capaz de voar, soltei-o. Na mesma hora retomou para junto de seu dono em Woerden. Mas vinha visitar-nos regularmente e era um hóspede querido. Certa vez desapareceu por várias semanas. Quando retornou notei que um de seus artelhos posteriores havia quebrado e soldado torto. Justamente esse artelho quebrado é que encerra a graça da história de Hansl, a gralha falante. Nós sabemos como conseguira esse defeito. E quem nos contou? Acreditem ou não, foi o próprio Hansl que nos contou! Pois quando retornou após sua longa ausência, Hansl sabia uma frase nova. Com voz de peralta falava as seguintes e difíceis palavras: “Foi com um martelo que o prenderam!”

Não se podia duvidar da veracidade dessa informação. Assim como o Papagallo, Hansl gravou essa frase que com certeza não ouvira com freqüência, porque a ouvira a máxima excitação, com certeza logo após ter sido presa. Como conseguiu fugir, isso Hansl, infelizmente, não nos contou.

Nesses casos um amigo de animais é capaz de jurar que a ave entende o que fala. Mas nem se fale nisso. Mesmo esses pássaros “falantes” que, como já vimos, são capazes de relacionar suas palavras com certos pensamentos e acontecimentos, nunca aprendem a alcançar a finalidade mais simples com o seu saber.

Otto Koehler, que registra os maiores resultados no adestramento científico de aves, o homem que treinou pombos de forma que eles conseguiam realmente contar até seis, também tentou com o seu talentoso papagaio cinzento Abutre, que já mencionamos, adestrá-lo para que dissesse “alimento”, se estivesse com fome, e “água”, se sentisse sede. Isso ele não conseguiu, e até agora ninguém mais logrou algo semelhante. Esse fato é em si bastante surpreendente porque o papagaio pode “associar” o que diz com qualquer movimento que o leve a alcançar o objetivo que ambiciona. Movimentos que visam unicamente a causar no dono deles uma determinada ação.

Um comportamento muito cômico e grotesco, nesse sentido, tinha um pequeno papagaio manso, um periquito de Nanday que Karl von Frisch possuía. Conforme costume, esse cientista só deixava esse pássaro esvoaçar em liberdade pelo quarto por uns tempos, depois de observar uma dejeção do animal, o que garantia que durante dez minutos não tinha nada a temer pelos lindos móveis. Em pouco tempo, o periquito entendera essa relação e como tinha paixão de voar em liberdade, assim que via o professor von Frisch aproximar-se de sua gaiola, demonstrativamente forçava e expelia uma manchinha. Mesmo quando não lhe era possível produzir nada de efetivo, ainda assim se esforçava desesperadamente. Tanto se sacrificava que corria o risco de passar mal. Vendo-o assim Von Frisch o deixava em liberdade.

E o inteligente “Abutre”, muito mais inteligente que o pequeno periquito, não aprendia de forma alguma a falar “comida” se quisesse comer. Todo esse complicado aparelho da laringe e do cérebro que nos permite o relacionamento de idéias e a imitação, não nos parece ter nenhuma função compreensível para desenvolver a conservação da espécie. Pode-se indagar em vão sobre “para que” existe.

Só conheci uma ave que conseguiu usar uma palavra humana quando queria algo, que liga portanto uma finalidade a uma expressão sonora aprendida. E isto, certamente, não é coincidência, pois foi uma ave que eu considero espiritualmente a mais superior de todas, ou seja, uma gralha cinzenta que tem um grito inato que corresponde ao “Kiá” das gralhas e a um convite de voar junto: é um forte, metálico e sonoro “Rackrack” ou “Krackrackack”. Se a ave quer fazer um semelhante seu voar junto consigo, faz os mesmos movimentos como vimos na gralha em casos semelhantes: por trás ela sobrevoa o outro, com as asas bem coladas balança bem junto do outro e ao mesmo tempo grita bem alto e forte o seu “Krackrackrack”, que ressoa como uma seqüência de pequenas explosões.

Essa gralha “Roa”, chamada conforme o chamariz dos filhotes dessa espécie, ainda na velhice era íntima amiga minha e quando não tinha outra coisa a fazer, acompanhava-me em longos passeios, até mesmo em passeios de barco a motor no Danúbio ou excursões de esqui na neve. Especialmente quando já alcançara idade avançada, ela não só passou a ser tímida em relação a outras pessoas, corno também tinha aversão de lugares onde anteriormente havia-se assustado ou tido alguma experiência desagradável. Em tais lugares, além de não querer descer para junto de mim, ela não tolerava que eu permanecesse nos lugares que considerava perigosos. E da mesma forma como as gralhas-pais fazem com os filhotes descuidados, tentando fazê-los voar consigo, “Roa” nesses casos caía sobre mim em vôo rasante, por trás bem junto da minha cabeça balançando com a cauda e levantando vôo novamente; ao mesmo tempo me olhava por sobre o ombro. Junto com esse movimento inato, herdado, não gritava o chamariz próprio da sua espécie, senão chamava com som de voz humana: “Roa, Roa, Roa”! O impressionante nesse fato era que “Roa” também tinha o chamariz específico e correspondente no vôo ao “Krackrackrack” e que sempre aplicava em relação às outras aves. Se quisesse que sua esposa voasse com ele então dizia “Krackrackrack”, para seu amigo humano, porém, dizia a palavra humana! Cogitar em adestramento, nesse caso, é impossível. Só pode ter acontecido que a ave a princípio disse por acaso “Roa”, e que eu, da mesma forma, por acaso, teria ido até ela. Isso, porém, com certeza não ocorreu. Portanto, a velha gralha deve ter imaginado que “Roa” era o meu chamariz. Assim sendo, Salomão não foi o único que sabia falar aos animais, mas “Roa” é até agora o único animal que falou com sentido e conhecimento para um homem uma palavra humana, mesmo que se trate de um simples chamariz.

domingo, fevereiro 04, 2007

V - Os companheiros de todos os tempos

A tempestade da primavera ressoa pela chaminé da lareira, diante de meu escritório os velhos pinhos agitam excitados os braços, sussurrando. E de repente, dentro do espaço celeste visível pela moldura de minha janela, como que airados de cima, aparece uma dúzia de projéteis negros em forma de gotas e aerodinâmicas. Pesados como pedras vão caindo até bem perto das copas das árvores. De repente ganham umas asas grandes e negras e se tornam pássaros, leves espanadores arrebatados pelo vento e varridos da minha vista.

Eu chego à janela para olhar essa brincadeira singular que as gralhas fazem com a tempestade.

Brincadeira? Sim, uma brincadeira no verdadeiro sentido da palavra: é um movimento preciso que realizam por livre e espontânea vontade, com alegria, e não em função de uma finalidade. Observe-se que são movimentos aprendidos e não inatos, instintivos. Pois é exatamente isso que os pássaros treinam aqui, a utilização do vento, a exata avaliação das distâncias e, principalmente, o conhecimento das condições locais de vento e de todos os lugares em que exatamente nessas condições de vento existem ascendências, vácuos e redemoinhos. Tudo isso não é um bem herdado, mas uma técnica conseguida individualmente.

E o que é que as gralhas não fazem com o vento? No primeiro instante o vento nos parece brincar com os pássaros, como o gato com o rato. Mas, os papéis são invertidos: são os pássaros que brincam com a tempestade. Quase, mas sempre só quase, eles parecem deixar acontecer à vontade da tempestade, se deixam ascender para o alto, como se fossem cair para cima no céu. Mas logo com um pequeno movimento e levantando uma asa sobre as costas, em um segundo abrem as asas por baixo contra o vento, atiram-se para baixo com muito mais velocidade que na queda livre, com um movimento de asa igualmente curto como antes, viram-se na posição normal e se atiram com as asas quase totalmente fechadas numa corrida feroz contra o vento que gostaria de soprá-los para o oeste, mas que os leva uns cem metros para o leste. Isso não requer esforço algum dos pássaros, é o próprio gigante cego que faz o trabalho necessário para transportar o corpo do pássaro a mais de cem quilômetros à hora pelo ar. A gralha propriamente não cooperou nisso com mais de duas a três mudanças de posição das asas pretas. Domínio soberano sobre a força bruta, triunfo embriagador do organismo vivo sobre as forças elementares do inorgânico!

Já se passaram vinte e quatro anos desde que a primeira gralha sobrevoou a cumeeira de Altenberg, e desde então perdi o coração por esses pássaros de olhos prateados. E como tantas vezes ocorre com o grande amor da nossa vida, não achei nada demais no dia em que conheci a minha primeira jovem gralha. Ela estava dentro de uma gaiola escura, na loja de animais de Rosalia Bongars, onde já sou freguês há vinte e quatro anos e a comprei por quatro schillings. Não a comprei por causas científicas, mas porque me deu vontade de encher de alimento aquela "goela tipo espada" orlada de vermelho e amarelo do jovem pássaro. Depois de tomar-se independente desejei que ela arribasse. Isso realmente aconteceu, mas sem o sucesso esperado, pois até hoje elas chocam debaixo do nosso telhado. Nunca me havia sido tão compensado um ato de compaixão com um animal.

Poucas aves, ou melhor, poucos animais superiores (considerando-se que os insetos que formam estados pertencem a outro grupo) têm uma vida sócio-familiar como as gralhas. É por isso que só poucos filhotes de animais são tão emocionalmente desamparados, e dependem com tanto carinho do tutor, como as jovens gralhas.

Quando os canos de suas penas grandes endureceram e minha gralha foi capaz de voar ela demonstrava ter uma dependência quase que infantil por mim. Ela voava de quarto em quarto pela casa me acompanhando, e caso eu precisasse deixa-la só, ela chamava com seu grito: "Tschok". Por esse grito é que ela foi denominada, começando uma tradição nossa de denominar cada filhote de pássaro pelo seu chamariz.

Uma jovem gralha que esteja sentimentalmente ligada com toda sua dependência juvenil em seu tutor apresenta naturalmente muita vantagem quando há interesse científico. Pode-se andar com o pássaro livremente, é possível estudar seu vôo, seu modo de obter alimentação, em suma, todos os seus comportamentos em um ambiente completamente natural, fora dos apertos de uma gaiola e ao mesmo tempo numa proximidade absoluta. Acho que nunca aprendi tanto e coisas tão importantes de nenhum outro animal quanto de Tschok no verão de 1926.

Acho que devo à minha imitação do chamariz de gralha o fato de Tschok cedo preferir-me em lugar de qualquer outra pessoa. Voando, acompanhava-me em longos passeios, mesmo quando eu ia de bicicleta, fiel como um cão. Apesar de, sem dúvida alguma, conhecer-me pessoalmente e fazer valer sua afeição só para mim, em seu acompanhar aparecia algo instintivo, quase como reflexo, da seguinte forma: se alguém andasse mais rápido do que eu naquele momento e me ultrapassasse, a gralha me abandonava juntando-se ao estranho. Porém logo reconhecia seu erro e voltava para junto de mim; conforme ia envelhecendo,essa correção se tornava cada vez mais rápida. Mas o início de um movimento intencionado de querer acompanhar o mais rápido, eu ainda notava mesmo com o passar do tempo.

Mas Tschok entrava em um conflito espiritual ainda muito maior ao ver uma ou um bando de gralhas levantar vôo. A visão de um par de asas pretas batendo-se, afastando-se rapidamente, provoca na jovem gralha um impulso forte de querer voar atrás. Tschok nunca conseguia resistir e mesmo com experiências sinistras não conseguiu aprender nada nesse sentido. Cegamente corria atrás de qualquer gralha e desse modo, às vezes era levado para longe pelo bando, quase se perdendo.

Quando porém as gralhas aterrissavam, seu comportamento era estranho. No momento em que não mais voavam, a magia das asas pretas batendo-se não tinha mais efeito, e então, Tschok, isolado, principiava o seu grito de choro, o mesmo que os jovens usam para chamar os pais quando se perdem, chamando-me. Assim que ouvia o meu grito de resposta levantava vôo, às vezes tão veementemente que arrastava as outras gralhas consigo, voando em minha direção na ponta do bando. Nestes casos eu tinha que me fazer notar pelas gralhas, senão começariam outras complicações. No princípio, quando eu ainda não conhecia esse perigo, elas chegavam até junto a mim sem me notarem. Porém ao ver-me, se assustavam de tal forma que em pânico levantavam vôo, e Tschok, contagiado pelo medo geral, partia novamente junto.

Como em todas as formas de comportamento social cujo objeto é determinado pela experiência individual, Tschok adaptara-se ao homem. Como o Mowgli de Kipling se designava como um lobo, Tschok, se falasse, certamente se designaria um ser humano. Só o sinal de par de asas pretas batendo é inato e logo compreendido: "Venha, você junto". Humanizado, diríamos que Tschok enquanto andasse a pé se considerava humano, mas ao voar se considerava uma "gralha-cinzenta”, oriunda da região leste do rio Elba, onde primeiro conheceu um par de asas pretas batendo.

Quando em Mowgli, de Rudyard Kipling, despertou o amor, a força de seus instintos fez que abandonasse seus irmãos lobos, e voltasse para os homens. Bem que o poeta tinha razão: nós temos suficientes motivos para supor, que nos homens como na maioria dos mamíferos, o objeto do amor sexual é reconhecido através de sinais seguros herdados. Isso é bem diferente nos pássaros. Pássaros criados sozinhos, que nunca encontraram nenhum de sua espécie, na maioria das vezes nem sabem a que tipo pertencem, isto é, dirigem sua sociabilidade e seu amor sexual para o ser vivo com que passaram uma fase expressiva de seu desenvolvimento na juventude, portanto na maioria das vezes aos homens. Neste caso, conforme as circunstâncias, podem ocorrer alguns enganos. Como exemplo, tendo no momento uma gansinha doméstica, a única sobrevivente entre seis filhotes de ganso de uma infecção de tuberculose nas asas e que foi criada na companhia exclusiva das galinhas. Apesar de termos providenciado ainda em tempo um lindo ganso, ela já havia se apaixonado perdidamente pelo nosso galo de Rhode Island e o enchia de declarações de amor, sem tomar conhecimento algum à corte do ganso.

Caso semelhante e tragicômico aconteceu com um pavão branco do zoológico de Schoenbrunn. Também como último sobrevivente de uma ninhada de pavões prematura e arrasada pelo mau tempo, ele foi levado para lugar mais quente e disponível naquela época logo após a Primeira Guerra Mundial, isto é, para junto das enormes tartarugas. Durante toda a vida esse infeliz animal só fazia a corte no cio para tartarugas gigantes ficando cego e surdo para os encantos dos pavões fêmeos. É típica a irreversibilidade impressionante da fixação da vida instintiva em um objeto definido.

Ao amadurecer, Tschok apaixonou-se pela nossa empregada, que na época se casou e mudou para uma aldeia a uns três quilômetros. Depois de alguns dias Tschok descobriu-a e instalou-se em sua casa. Somente à noite voltava para o seu lugar de origem, o sótão de nossa casa. Em meados de junho, porém, passado o tempo do acasalamento e de choca das gralhas, de repente ele retornou a nós, adotando uma das quatorze jovens gralhas que eu havia criado na primavera. Em relação ao seu filho adotivo, Tschok comportou-se nos mínimos detalhes, como se comportam as gralhas em relação aos filhotes. Está claro que as formas de comportamento no período da choca têm que ser inatas, pois os próprios filhotes são os primeiros que o pássaro conhece. Se não reagisse com um comportamento específico e instintivo, sem dúvida ele as devoraria como a qualquer ser vivo do mesmo tamanho.

Eu devo adicionar ainda que Tschok era uma fêmea, e que sem dúvida considerava como seu macho a jovem senhora. O comportamento de Tschok não deixava dúvida alguma sobre isso. Nos pássaros não se pode falar em regra de cruza segundo a qual os animais fêmeos se sentem atraídos pelos machos e vice-versa, nem entre os papagaios nos quais isso é freqüentemente confirmado. Como exemplo cito uma outra gralha, um macho comprado adulto, que se apaixonou por mim, tratando-me em todos os sentidos como uma dama. Durante horas esse pássaro tentava fazer com que eu entrasse na cova de alguns centímetros que tinha escolhido para seu ninho. Da mesma forma, certa vez um pardal tentou atrair-me para dentro do bolso do meu próprio paletó. Mas a tal gralha macho tornou-se especialmente difícil com sua mania de querer alimentar-me com seus petiscos preferidos. Impressionante era que ele "entendia" a boca humana como abertura para a entrada; eu podia torná-Io muito feliz ao abrir meus lábios e balbuciar os piados de pedido em sua direção. Bem, isso representava um enorme sacrifício de minha parte, pois nem eu aprecio minhocas esmigalhadas e misturadas com saliva de gralha. Mas, se eu não correspondia às suas expectativas, o que era bem compreensível, eu ainda tinha que cuidar bem de minhas orelhas senão, antes de notar qualquer coisa, teria os ouvidos cheios de mingau de minhoca até ao tímpano, porque a gralha empurra o alimento com a língua goela adentro dos filhotes ou da fêmea. Bem, essa gralha, alimentadora obstinada, só "usava" minhas orelhas se eu lhe negasse a boca; sempre tentava primeiro nesta.

Devo exclusivamente a Tschok ter conseguido criar quatorze filhotes de gralhas em 1927.

Como muitas de suas atitudes instintivas não faziam sentido para o homem, ou melhor, ficavam incompreendidas, despertou-se em mim o desejo e a curiosidade de estudar seu comportamento familiar e sexual, para isso precisava domiciliar gralhas em liberdade. Como seria impossível para mim guiar e substituir os pais de quatorze filhotes, da mesma forma como havia feito com Tschok um ano antes, e como eu já conhecia a falta de capacidade de orientação das jovens gralhas, tive que elaborar outros meios para prendê-las ao lugar.

Após longa reflexão cheguei à seguinte saída que deu bons resultados.

Construí junto do buraco de entrada do sótão que era habitado por Tschok já há longo tempo, uma gaiola comprida e alongada composta de duas partes e que tomava quase todo o lado estreito do teto da casa e se apoiava numa goteira de um metro de largura. Marquei os filhotes de gralha um por um com anéis coloridos nos pés, o que também determinava seus nomes: Azul-azul, Vermelho-direito, e assim por diante.

A princípio Tschok se perturbou com as mudanças e obras junto a sua casa. Levou vários dias até acostumar-se em sair voando ou entrar pela porta vaivém em cima do teto na parte da frente da gaiola.

Então Tschok foi colocado na parte dianteira da gaiola e preso com os dois filhotes de gralha mais mansos, Azul-azul e azul-vermelho. Prendi os outros dois filhotes na parte posterior da gaiola. Divididos dessa forma, deixei que ficassem alguns dias por conta própria. Esse procedimento tinha por finalidade que os animais que foram determinados para voarem primeiro, continuassem emocionalmente unidos aos ainda presos. Como já mencionei, exatamente nessa época, Tschok começou a interessar-se por uma das jovens gralhas, a Amarelo-esquerda; por sorte, pois assim, retomou em tempo para casa para a experiência seguinte: Eu não escolhera a Amarelo-esquerda para as primeiras tentativas de liberdade, pelo fato de esperar, que por amor a ela Tschok permaneceria nas proximidades de nossa casa. De outro modo era de temer que se mudaria com a Amarelo-esquerda, que agora já era totalmente capaz de voar, para junto da senhora Unterauer em St. André.

Minha esperança de que os filhotes de gralha voassem atrás de Tschok, como ela havia feito comigo um ano atrás, só se concretizou em parte. Ao abrir a portinhola pela primeira vez, Tschok, naturalmente, logo saiu para fora e em poucos segundos sumiu da minha frente. No entanto os filhotes, pelo contrário, demoraram antes de se aventurarem pela nova abertura para a liberdade. Ambos tentaram isso juntos, exatamente no momento em que Tschok esvoaçava por perto, tentando acompanhá-lo. Mas, como Tschok não considerou o vôo mais lento e igual dos jovens, perdeu-os logo no primeiro vôo rasante. Mais tarde quando soltei a Amarelo-esquerda, Tschok voou lentamente diante dela, sempre olhando para trás da mesma forma como fazem as gralhas pais ao guiarem os filhotes no vôo. Com os outros filhotes ela não se preocupava nada, e esses pareciam também não compreender que Tschok possuía o conhecimento do local que lhes faltava e que servia melhor de guia do que qualquer um deles.

Assim que soltei três a quatro deles ao mesmo tempo, aconteceu algo esquisito e perigoso. Os bobinhos procuravam entre si um guia, isto é, cada um tentava voar atrás do outro. Assim circulavam sem meta ou direção pelo ar, subindo mais e mais no espaço. Como nessa idade ainda não são capazes de atrevidos vôos rasantes com os quais gralhas adultas rapidamente conseguem descer, esse comportamento das jovens gralhas termina por se perderem tão longe quão alto conseguiram chegar. Infelizmente, dos quatorze, alguns se perderam dessa forma, pois carecíamos de uma gralha amadurecida – Tschok só estava com um ano, portanto não estava nem sexualmente madura – que, como relatarei mais tarde, teria buscado de uma forma específica os desgarrados.

Em outras coisas também notamos a falta da orientação dos pais. Gralhas jovens não possuem reações inatas face a inimigos ameaçadores. Pega, pato, pintarroxo e muitos outros pássaros ao verem um gato, uma raposa ou um esquilo, logo se retraem para fugir. Isso eles fazem tendo sido criados desde pequeninos pelos homens, e quando ainda não têm experiência alguma com inimigos. Uma pega domesticada nunca se deixa apanhar por um gato, e o pato selvagem amansado desde jovem reage para lima pele vermelha que seja colocada na sua frente num lago, como se "conhecesse" exatamente as características de seu inimigo, a raposa. Ela fica amedrontada e cautelosa e, dando o sinal de alarma, entra na água sem tirar os olhos da imitação de raposa. Ela sabe, ou melhor, as suas reações inatas "sabem" que a raposa não voa nem nada rapidamente para pegar um pato na água. O sentido de seu comportamento está em manter em evidência a raposa descoberta para conhecimento geral, frustrando assim sua caçada.

A noção do inimigo, que em outros pássaros é instintivamente inata, tem que ser pessoalmente apreendida pela gralha jovem. E isto de uma forma rara, através de verdadeira tradição: os pais transmitem aos filhos de geração em geração suas experiências pessoais.

Como reação ao inimigo, a gralha só tem isto de inato: ataca todo ser vivo que leve algo preto que se debata ou mexa. A ave se inclina para frente, tremendo com as asas semi-abertas e solta um grito de advertência, cujo som metálico e ressonante é entendido como expressão de raiva incontida.

É possível pegar uma gralha amansada, talvez para colocá-Ia na gaiola ou aparar suas unhas. Só se torna perigoso quando se tem duas gralhas. Tschok nunca se importava se eu a pegasse, mas quando os quatorze filhotes chegaram, eu não podia permitir-me de apanhar na frente dela nenhum deles. Ao fazer isso pela primeira vez sem suspeitar de nada, ressoou atrás de mim o tal grito satânico, assustando-me. E como se fosse uma flecha preta caiu sobre a mão que segurava o filhote de gralha: surpreso vi um buraco profundo e redondo na parte superior da minha mão. Para mim era claro o impulso cego desse ataque, pois Tschok se sentia intimamente ligado a mim e odiava esses quatorze filhotes do fundo do coração (a Amarelo-esquerda ela só veio a adotar bem mais tarde), a ponto de precisar protegê-Ios para que ela não os matasse. Mas apesar disso "ela não era capaz de ver" eu tomar aqueles filhotes na mão.

Por coincidência, graças a uma observação feita naquele verão, ficou claro para mim o caráter de reflexão cega de reação já descrita. O crepúsculo já caíra quando eu voltava de um banho no Danúbio e me apressava em subir ao teto, como todas as noites, a fim de atrair as gralhas para a gaiola onde dormiriam. Eu me encontrava em pé sobre a goteira cercado pelos pássaros, quando senti algo molhado e frio, era o meu calção que eu na pressa havia colocado no bolso. Na mesma hora tirei-o do bolso e aí, de repente me vi rodeado de um bando de gralhas a chilrear furiosas, dando picadas dolorosas na minha mão que segurava o calção preto.

Apesar de preta, minha máquina fotográfica Mentor não causava escândalo, mas se eu puxasse o papel preto do embrulho do filme, as gralhas logo principiavam a chilrear e me atacavam, talvez porque o papel se movimentava ao vento. O fato de saberem que eu era inofensivo, ou melhor, até amigo, não importava. Se eu tivesse algo móvel e preto na mão, era considerado um devorador de gralhas. O impressionante é que isso pode acontecer mesmo com a própria gralha: certo dia presenciei a um chilrear de ataque geral sobre uma gralha fêmea que transportava uma pena de um Corvus corax, uma enorme ave de rapina que tem penas de um negro brilhante, para a construção de seu ninho! Gralhas amansadas, porém, não atacam nem chilreiam se lhes mostrarmos, segurando na mão, um filhote seu, enquanto ele ainda está sem as penas, isto é, "não está preto". Mas logo que os primeiros canos de pena despontam, e que os animaizinhos ficam pretos na parte superior, não devemos nem ousar em tocá-los se não quisermos expor-nos a um ataque feroz.

Após um desses ataques as gralhas se tornam desconfiadas contra aquilo que era inimigo. É impossível para nós entender a qualidade especial ligada a essa profunda lição instintiva. Nossas paixões, ódios, raivas e medos só podem ser comparados muito limitadamente com os dos animais. No caso não sabemos o que a gralha sente. Só não podemos duvidar de que essa vivência é muito específica e marcada pela paixão.

Essa ardente paixão faz com que fique gravada na memória do animal, muito rapidamente, uma relação do significado da situação (a gralha nas garras do ladrão) e da pessoa do criminoso. Se levarmos uma gralha amansada a dois ou três desses ataques consecutivos, o relacionamento com ela estará comprometido para sempre. Daí em diante bastará vê-lo para chilrear.

Para ela é como se levasse o sinal de Caim, mesmo não se tendo na mão nada que mexa e seja preto. Mais ainda, essa gralha será capaz de convencer todas as outras de seu mau caráter. O chilrear é também tão contagioso como a visão de algo preto mexendo-se, e desencadeia nas gralhas que a ouvem a mesma agressão. Essa “terrível difamação” de se ter sido visto com aquilo uma ou duas vezes, se espalha com a rapidez de um fogo, e rapidamente se é considerado por todas as gralhas da vizinhança um animal de presa.

O sentido original do chilrear está sem dúvida no desejo de defender um semelhante, que tenha sido atacado por um animal de presa, ou para salvá-Io ou para dificultar o prazer numa futura caça à gralha. Essa reação vale a pena para as gralhas, como no caso do açor, por exemplo, que tem bem menos prazer em devorar gralhas do que outros pássaros que não lhe estraguem e espantem a caça. Assim essa reação é de grande importância para a conservação da espécie. Essa função original de reagir chilreando ocorre com outras aves de rapina que não vivem em sociedade, como nos Corvus corax, pegas e corvos em geral. Comportamentos semelhantes também existem em passarinhos.

Ao significado original dessa reação de defesa do companheiro, principalmente nas gralhas com o desenvolvimento superior da vida em sociedade na história do tronco das aves de rapina, foi acrescentado algo mais ainda importante e novo: a transmissão ao pássaro jovem do conhecimento do animal que terá que temer como um vilão: é um verdadeiro conhecimento adquirido e não há analogia instintiva de tal conhecimento!

Pensemos quão notável é isso: um animal que não conhece o inimigo através de instintos inatos, mas que recebe “como que falado” pelos semelhantes experientes aulas sobre o inimigo que terá de temer! Isso é verdadeira tradição, é a transmissão de conhecimentos de pai para filho. Muitos jovens poderiam tomar isso como exemplo, como as jovens gralhas tomam a sério as advertências "bem intencionadas" dos pais. Se aparecer um ser vivo, até o momento desconhecido para o jovem, a velha gralha-guia precisa chilrear uma só vez, e então o jovem terá sempre gravada a relação entre a imagem do inimigo e da advertência. É muito raro acontecer entre as gralhas que vivam livremente, que um jovem só reconheça um vilão ao ver algo preto a se debater em suas garras.

As gralhas sempre voam em densos bandos, é por isso que se supõe haver sempre entre elas uma mais experiente, que ao deparar com um inimigo logo começa a chilrear.

Minhas quatorze gralhas não tinham ninguém que as pudesse advertir de perigos. Sem pais para adverti-Io, um filhote ficará pousado calmamente, mesmo diante da aproximação dele, e sem temor algum chega junto ao primeiro cão caçador, achando-o tão inofensivo e amável como os homens junto aos quais se criou. Portanto, não era de admirar que no princípio, quando iniciou os vôos em liberdade, o meu bando de gralhas tenha diminuído consideravelmente. Ao notar esse perigo e conhecer seu motivo, deixei meus pássaros soltos apenas durante o dia claro, quando poucos gatos ficam rondando. Eu precisava de muito tempo e de muita paciência todas as tardes, para pô-Ios na gaiola. É mais fácil guardar um saco cheio de pulgas do que atrair quatorze gralhas para uma gaiola.

Eu não podia atacá-Ias e enquanto uma já se encontrava na minha mão e eu a colocava na gaiola pela portinhola, duas escapavam. Mesmo usando a parte dianteira da gaiola como uma comporta, demorava todas as noites aproximadamente uma hora até conseguir ter todos os pássaros atrás das grades.

Bem, assim vivia eu com as minhas gralhas, que eu conhecia perfeitamente uma por uma, a bem dizer pela fisionomia; já nem precisava olhar para os anéis coloridos de seus pés. Isso é bem mais fácil dizer do que fazer. Para conhecer desse modo cada um, pessoalmente, é necessário passar muito tempo num contato íntimo, junto delas. Sem essa condição seria impossível penetrar nos detalhes da vida social das gralhas.

Será que esses animais também se conhecem “entre si” com tanta segurança? Muitos psicólogos de animais não acreditavam nisso, até duvidaram da possibilidade. Apesar de tudo eu posso assegurar: cada participante da minha colônia de gralhas sabia exatamente quem era o outro. Isso já era um simples fato oriundo da “hierarquia”. Qualquer dono de galinhas sabe que mesmo entre os habitantes mais ignorantes de um galinheiro existe uma ordem definida, sabendo uma galinha diante de outra de quem se trata. Depois de algumas brigas que não precisam ser necessariamente violentas, qualquer animal sabe quem deve evitar ou quem deve evitá-Io. Para a posição dentro dessa hierarquia não contam somente as forças físicas, mas também a própria coragem, a energia, eu diria a autoconfiança do pássaro em questão.

Nos animais sociáveis tais hierarquias são muito conservadoras. Quem, em tais brigas, mesmo se forem só morais, sair vencido, guarda isso longo período, e não se atreve a se levantar tão facilmente contra seu vencedor, exceto nos casos em que os animais fiquem em contato constante. Mesmo entre os mamíferos mais superiores e inteligentes, também ocorre assim.

As brigas pela hierarquia numa colônia de gralhas se diferenciam num ponto fundamental das do galinheiro. Aqui os mais inferiores não têm de que rir. Num conglomerado artificial de animais associais, tanto num galinheiro como numa gaiola de passarinhos, os que se sentem superiores na hierarquia picam ferozmente os inferiores. Nas gralhas, isso é bem diferente. Numa sociedade de gralhas, nem a “aristocracia”, nem principalmente o “déspota”, se mostram muito agressivos contra os inferiores. Irritam-se com aqueles que estão logo abaixo deles na ordem, principalmente o "déspota" contra o pretendente ao trono, o número um contra o número dois. Um exemplo: a gralha A está sentada junto no lugar onde comem e se alimentam. A gralha B chega ostentando sua "postura de imponência", a cabeça erguida, então a gralha A desvia para o lado sem deixar perturbar-se. Então chega o C, cuja postura é bem menos pronunciada, mas que faz com que A fuja logo, para nossa surpresa. Aí B toma uma posição ameaçadora encrespando as penas das costas, ataca o C, expulsando-o. Explicação: o C estava dentro da ordem entre os outros dois, suficientemente perto do inferior A para assustá-Ia, mas suficientemente próximo ao superior B, para despertar a raiva deste.

Gralhas muito superiores são extremamente bondosas com as muito inferiores. Consideram-nas de certo modo desprezíveis e sua postura de imponência em relação a elas é mero formalismo; só em caso de proximidade absoluta se transforma num ataque real. A irritabilidade dos superiores contra os inferiores se encontra segundo a posição deste último. Esse comportamento muito simples age como um mediador muito “justo” entre as brigas dos sócios da colônia. Movimentos apaixonados agem sobre as gralhas da mesma forma como nos homens, mesmo se não forem dirigidos a eles. Assim, gralhas superiores se envolvem nas brigas de dois inferiores, no momento que a briga começa a aumentar de proporções. Como o interventor sempre se irrita mais contra o parceiro mais graduado na briga do que contra o de grau inferior, ou seja, contra a gralha mais importante, principalmente o déspota da colônia – sempre age conforme os princípios do cavalheirismo: onde há mais fortes, ele tomará o lado dos mais fracos. E como brigas sérias quase sempre só ocorrem por causa de lugares para os ninhos – nos outros casos o subordinado se retira sem luta – esse comportamento das gralhas machas mais fortes protege, com muito efeito, os ninhos dos companheiros inferiores na colônia.

Uma vez estabelecida, essa divisão social entre os sócios de uma colônia de gralhas será mantida com muito conservadorismo. Eu nunca vi nenhuma alteração espontânea sem motivos externos, isto é, através de rebeldia de alguma gralha socialmente subordinada. Na minha colônia de gralhas só ocorreu uma vez um déspota ser destronado, e isto por um antigo membro da colônia que retomara após uma longa ausência e perdera o profundo respeito pelo dominador. O rebelde chamava-se “Rossiten Duplo” (denominado assim por causa dos dois anéis que levava nos pés) e retomara no outono de 1931, bem alimentado e fortificado pelas viagens de verão para casa, e logo na primeira briga venceu o verde-amarelo que até aí era o macho que comandava. Isto era notável por dois motivos: primeiro porque na luta o “Rossiten Duplo” tinha contra si a esposa do verde-amarelo também (ele ainda era solteiro), segundo porque só tinha um ano e meio enquanto que o verde-amarelo era ainda um dos quatorze no ano de 1927.

Também foi interessante o modo como eu soube dessa revolução. De repente vi no local em que se alimentam como é que uma pequena e frágil e por ordem bem mais subordinada gralha-fêmea se aproximava sempre mais e mais do verde-amarelo, que sossegadamente se alimentava, até que finalmente tomou a postura imponente, diante da qual o macho, embora mais forte, abriu lugar e se afastou. Ao notar que a jovem gralha herói havia tomado o lugar do verde-amarelo, eu achava que esse déspota recém-destronado ainda estivesse intimidado pelo choque da derrota e que permitia que outros membros da colônia, como essa jovem dama havia conseguido, o intimidassem. Essa suposição era falsa. O verde-amarelo fora vencido pelo “Rossiten Duplo”, e por isso era claramente o número dois. Mas, "Rossiten Duplo" logo depois de sua volta, apaixonou-se por aquela jovem dama e em menos de dois dias noivaram seriamente. Como o casal de um par de gralhas em qualquer briga responde um pelo outro com coragem e fidelidade, não existe entre eles uma hierarquia no sentido restrito da palavra – ambos têm a “mesma” posição em brigas com outros membros da colônia. Com o noivado a noiva ganha a posição do noivo, isto é, sobe na ordem. O contrário não existe: uma lei inquebrantável determina que uma gralha macha nunca poderá casar com uma fêmea que seja superior a ele.

Admirável nisso não é tanto a mudança de categoria em si, mas a rapidez com que é espalhada pela colônia que essa pequena gralha fêmea, que até hoje apanhava da maioria, a partir de hoje é “senhora Presidente”, e, portanto, não pode ser olhada por nenhum nem com desconfiança. O surpreendente é que a própria interessada “sabe disso”. Depois de alguma experiência negativa os animais se tomam rapidamente tímidos e medrosos. Mas, para entender que se livrou dos perigos existentes até então e na proporção aumentar de coragem, é necessário muito, muito mais. Essa pequena gralha sabia muito bem, depois de pouco mais que quarenta e oito horas, o que é que podia se permitir. E, infelizmente, precisa ser dito que ela abusou suficientemente de seus novos direitos, esquecendo-se da tal “nobre” e “esnobe” tolerância, que as gralhas superiores como de costume têm em relação aos subordinados; muito pelo contrário, ela aproveitava qualquer oportunidade para se vingar de seus antigos superiores. Isso ela não fazia somente com atitudes de imponência senão passava logo a fatos evidentes. Resumindo: seu procedimento era absolutamente vulgar.

Com essa expressão não estou humanizando nada, se entendermos que tudo aquilo que é conhecido como muito humano sempre provém do pré-humano, ou seja, aquilo que temos em comum com os animais superiores. Espero que acreditem que, palavra de honra, não projeto qualidades humanas no animal. Muito pelo contrário: demonstro quanta herança animal se encontra até hoje no homem. Mesmo quando dizia há pouco que uma gralha macha se apaixonou por uma gralha fêmea, não estou humanizando. Exatamente nesse ponto, no apaixonar-se – “falling in love”, diz o inglês com plasticidade –, alguns pássaros e mamíferos superiores se comportam do mesmo modo que o ser humano. Nas gralhas freqüentemente aparece o grande amor, às vezes de um dia para o outro, de repente, e como nos homens o caso típico “do amor à primeira vista”. Alguns, logo noivam. No caso há que se ressaltar que a intimidade da convivência em comum não fomenta o processo de noivado, na forma como pensaríamos. Às vezes um distanciamento passageiro faz despertar aquilo que faltou nos anos de convivência íntima. Em gansos selvagens observei que noivados eram festejados só depois da separação de dois parceiros, que antes eram muito amigos e depois se reencontravam.

Contrariando o preconceito de que no amor entre os animais domina o momento “animal”, isto é, o sensual e brutal, tenho que reforçar que exatamente na vida desses animais, onde o amor e o casamento desempenham um papel fundamental, o noivado precede longamente o momento do acasalamento corporal.

As gralhas noivam na primeira primavera que segue seu nascimento, mas só na seguinte são capazes de se reproduzirem. Os gansos selvagens são iguais. Em ambas as espécies o tempo de noivado normal leva um ano. A corte da gralha macha, do ganso e finalmente do homem adolescente se assemelham, isto é, não possuem órgãos especiais para a época do cio, penas coloridas, como o pavão, ou meios de emitir sons especiais, como o rouxinol. Mesmo sem tais meios, a gralha macha tem de saber “fazer notar-se”. O modo e a forma como chega à sua meta é surpreendentemente humano. A jovem gralha macha “brilha” com todas as suas forças, todos os seus movimentos têm algo de intencional e não se deixa ficar o tempo todo na atitude de imponência (pescoço alongado e para cima). Fica procurando o tempo todo briga com as outras gralhas, e se deixa entrar em luta até com temidos superiores. Mas, note-se bem: só se “ela” estiver olhando.

Principalmente, tenta impressionar a cortejada com a propriedade de um ninho em potencial do qual espanta todas as outras gralhas, sem tomar conhecimento do grau que possuam, e junto do qual entoa um grito especial de atração para o ninho, um forte e alto “Zick, zick, zick”. Esse atrair para o ninho é geralmente só simbólico. Nesta fase ainda nem é tão necessário que a tal cavidade sirva realmente para um ninho. Qualquer pequeno buraco ou ângulo escuro mesmo sendo pequeno demais, caso o animal quisesse penetrar, basta para a cerimônia do "Zick". Aquela gralha macha que já mencionei anteriormente, que enchia minhas orelhas com farinha de minhocas, adorava fazer o “zick” na borda da panela cheia de minhocas de farinha. E as nossas gralhas que vivem em liberdade usam a abertura superior da chaminé para essa mesma finalidade. Então, por ocasião do começo da primavera o “Zick, zick” ressoa cheio de segredos pelas nossas lareiras.

Ao cortejar, a gralha macha dirige sempre para uma fêmea todas as variedades de representação. Mas, como é que ela descobre que toda essa representação só acontece por sua causa?

Isso são “os olhos que falam”! O tempo todo o macho olha para a cortejada, interrompendo seus esforços, assim que notar que ela vai embora voando – o que ela não fará tão facilmente se estiver interessada no jovem.

Muito peculiar e extremamente divertida até mesmo para o observador, que não faz comparações com os homens, é a diferença no jogo dos olhos do cortejador macho e da fêmea cortejada. Enquanto que o macho olha o tempo todo aberta e apaixonadamente para a fêmea, ela parece olhar em todas as direções, menos para o macho. Na verdade, porém, ela bem que olha, e com olhares rápidos que duram segundos, mas suficientemente longos para saber exatamente que toda aquela mágica é destinada para ela, e suficiente também para que ele saiba que ela está sabendo. Se ela estiver sinceramente desinteressada e nem olhar para ele, o jovem rapidamente desistirá de seus esforços vãos da mesma forma que... as pessoas.

A jovem gralha-dama expressa o seu “sim” chegando junto ao macho com a postura máxima de imponência, abaixando-se fazendo as asas e o rabo tremerem de forma peculiar. Esse movimento corresponde a um “pedido de acasalamento” ritualizado, não levando, porém, nunca ao mesmo, pois se trata de uma cerimônia de pura saudação. As gralhas casadas sempre cumprimentam seus esposos dessa forma mesmo fora da época do acasalamento. Essa cerimônia perdeu o sentido original, meramente sexual e agora expressa a terna submissão da fêmea perante o esposo.

A partir do momento em que a noiva “se rendeu” para o seu macho, ela se torna autoconfiante e agressiva contra as outras gralhas da colônia. Para as fêmeas o noivado representa quase sempre uma enorme promoção na ordem da colônia, pois enquanto não estão casadas são em geral menores e mais fracas, e na ordem se encontram abaixo dos machos.

O novo par de noivos forma uma comunidade íntima de proteção, intervindo ferozmente um pelo outro. Isto é muito importante porque juntos têm que conseguir e conservar um lugar para seu ninho contra a concorrência de outros casais mais velhos e superiores na ordem. É comovente observar esse amor obstinado. Quase sempre ostentando a postura de imponência máxima, nunca mais distante um do outro que um metro, vão caminhando assim pela vida. Andando assim, lado a lado, parecem estar muito orgulhosos um do outro, com as penas arrepiadas fazem um belo efeito com o preto aveludado de suas cabeças e o cinza-claro acetinado do pescoço. Tratam-se com carinho e delicadeza, contrastando com o modo rude como se comportam com os estranhos. Todo o petisco que o macho encontrar ele o dá para a fêmea, que aceita a oferenda com o mesmo gesto de mendicância de um filhote. Em geral encontramos em seus “sussurros de amor” muitas expressões infantis que as gralhas adultas não emitem mais. Isso também, como nos parece ser humano! Até em nós achamos uma inegável tendência à criancice nas várias formas do carinho. Não são diminutivos todos os apelidos que inventamos com carinho?

A expressão máxima de carinho da fêmea consiste em limpar a penugem da cabeça de seu amado, isto é, cuidar dele exatamente onde ele não alcança com o bico. Gralhas amigas, como também outras aves e mamíferos que vivam em sociedade, prestam entre si esse serviço carinhoso de “tratamento de pele social” também, sem nenhum sentido erótico. Mas não conheço nenhum outro ser que se aplique tanto nisso, como uma gralha apaixonada. Durante longos minutos, o que representa muito tempo nesses pássaros agitados, ela fica lustrando as longas e sedosas penas do esposo, que, voluptuosamente, com os olhos semicerrados e as penas arrepiadas ao máximo, lhe oferece o pescoço. Em quase nenhum outro ser vivo, nem mesmo entre os pombos que originaram o ditado de “inseparáveis”, o carinho no amor do casamento encontra uma expressão tão compreensível e comovente, como na gralha. E o mais bonito é que com o passar dos anos, em vez de diminuir, esse carinho aumenta! Gralhas têm vida longa, ficam pouco menos velhas que os homens. E como já disse, as gralhas noivam no primeiro ano de suas vidas e no segundo já casam, sua união dura longo período, talvez até mesmo mais tempo do que o do homem casado. E mesmo depois de muitos anos o macho alimenta a fêmea com o mesmo carinho, e esta faz ressoar os mesmos tons de íntima excitação de amor como na primeira primavera, que foi também a primeira da vida.

Dos diversos noivados e casamentos de gralhas a que assisti e pude acompanhar somente um não foi duradouro. Logo no princípio do noivado o macho e a fêmea separaram-se. A culpa desse insucesso era de uma gralha dama chamada verde-esquerda, que era temperamental demais.

Antes que a primavera de 1928 chegasse, isto é, na primavera dos meus “quatorze” nascidos em 1927, o déspota da época, Amarelo-verde, noivara com a Vermelho-amarela, na época a mais bonita virgem disponível. Eu também teria gostado mais dela. O Azul-amarelo, porém, a segunda gralha macha da colônia, como pude observar, havia também se apaixonado por ela. Mas, logo a seguir noivou com a Vermelho-direita, uma gralha bastante forte e grande para uma fêmea. O noivado da Azul-amarelo com a Vermelho-esquerda decorreu com muito mais vagar e muito menor intensidade do que a de Amarelo-verde e Vermelho-amarela. Para o Azul-amarelo e a Vermelho-direita não era esse ainda o grande amor.

O tempo exato para o amadurecimento sexual de gralhas de um ano é bem variado. As que acabei de citar tomaram consciência de seus amadurecimentos “boy-conscious”, pelos fins de março, princípio de abril, a Verde-esquerda só no princípio de maio. Mas então ela se empenhou no seu plano. Como já mencionei, ela era pequena e na escala da ordem encontrava-se em posição bastante inferior. O cinza do seu pescoço tinha pouco de prateado; segundo critérios humanos era bem menos bonita que Vermelho-direita, nem se falando da Vermelha-amarelo. Mas ela era muito temperamental. Apaixonara-se por Azul-amarelo, e seu amor era bem mais persistente do que a da Vermelho-direita, a quem – isso para antecipar um belo final de boas-letras – derrotou, apesar de ser uma rival bela e forte.

O primeiro sinal que notei no começo desse drama de amor foi observando a seguinte cena. Azul-amarelo estava sentado calmamente no canto superior da porta da gaiola aberta, e com satisfação deixava a Vermelho-direita acarinhar suas penas do pescoço. Sem que ambos notassem a Verde-esquerda pousou também na borda da porta ficando, porém, a princípio a um metro de distância do casal, sentada e observando vivamente os amantes. Aos poucos, cuidadosamente, com o pescoço alongado e pronta para fugir, foi se aproximando pela direita sempre mais perto de Azul-amarelo, e começou, da mesma forma, a limpar as penas do pescoço dele. O Azul-amarelo nem havia percebido que agora estava sendo limpo de dois lados, pois, como já observei, entregava-se totalmente com os olhos fechados. Vermelho-direita também não notara nada, porque o macho, muito inchado, se encontrava entre ela e a Verde-esquerda, tapando-lhe a visão. Essa situação engraçada perdurou alguns minutos até que por acaso o Azul-amarelo abriu o olho direito e viu a desconhecida, logo então começou a bufar e a bicar em sua direção. Aí a Vermelho-direita também descobriu a Verde-esquerda, pois a posição de ataque do macho havia-lhe permitido isso. Com um salto pulou por cima do noivo caindo sobre a intrusa com tal rapidez e ódio que tive a impressão de que essa não havia sido a primeira vez que ela tinha tomado conhecimento das sérias pretensões da Verde-esquerda.

A noiva oficial ficou consciente da situação: nunca antes, nem depois, vi nenhuma gralha em tal perseguição como na época a Vermelha-direita perseguiu a Verde-esquerda, porém sem qualquer resultado. A pequena porém musculosa Verde-esquerda era no voar bem mais superior. Após uma caçada aérea mais longa, quando a noiva pousava junto ao noivo estava sem fôlego. A Verde-esquerda, pelo contrário, chegava em perfeitas condições, com uma diferença de nem meio minuto. E foi isso que decidiu a questão.

Verde-esquerda foi pouco requintada, porém admiravelmente persistente em seu cortejar importuno. Sem cessar, dia a dia ela perseguia o casal. Quantas vezes a noiva oficial a expulsava, perseguindo-a para bem longe, quantas a impertinente reaparecia alguns segundos após.

O Azul-amarelo a princípio comportou-se sem simpatia alguma por ela. Ele não a perseguia, mas ela não devia chegar ao alcance de seu bico senão levava duros golpes. Não creio ter sido sua feminilidade que a protegeu de uma perseguição enérgica da parte dele, senão graças à lei que não está escrita, mas que faz com que as gralhas superiores não liguem muito aos subordinados.

Verde-esquerda se aproveitava desavergonhadamente dessa grandeza do Azul-amarelo, mantendo-o entre ela e a Vermelho-direita. Enquanto o casal se ocupava com algo, ela os acompanhava em toda parte, mas mantinha cuidadosamente uma certa distância. Mas, se eles se juntassem para um agradável descanso, a Verde-esquerda juntava-se logo a eles. Se a Vermelho-direita acarinhasse o noivo, rapidamente Verde-esquerda se esgueirava pelo outro lado e começava a fazer o mesmo.

Porém as gotas eram insistentes... Aos poucos os ataques da Vermelho-direita foram perdendo em intensidade. O Azul-amarelo foi-se acostumando de ser acarinhado ao mesmo tempo de ambos os lados. Finalmente assisti a uma cena que me abalou: Azul-amarelo estava sentado deixando que a Vermelho-direita coçasse sua nuca. Do outro lado, a pequena Verde-esquerda fazia o mesmo. De repente, por algum motivo qualquer, a Vermelho-direita parou de acariciar e retirou-se. O macho grande abrira os olhos e viu a Verde-esquerda do outro lado. Será que ainda a picaria? Ou a expulsaria? Não, propositadamente ele virara com cautela sua cabeça oferecendo a nuca para a pequena Verde-esquerda continuar acariciando o lugar, e então novamente fechou os olhos!

De agora em diante Verde-esquerda fazia progressos rápidos na preferência dele. Alguns dias mais tarde eu o vi alimentado-a carinhosamente; nessa ocasião a Vermelho-direita não se encontrava junto. Seria um grande exagero pensar que a ave teria capacidade psíquica para fazer isto propositadamente, “por trás das costas” de sua “noiva oficial”. Pois, se a Vermelho-direita estivesse presente, teria sido ela quem teria recebido o petisco; só por não estar presente é que a outra conseguiu. Na proporção em que Verde-esquerda ia ficando mais segura do macho, mais desabusadamente se comportava contra a Vermelho-direita. Ela já não fugia da outra, e assim, às vezes, ocorriam brigas entre ambas. Nesse caso o comportamento do Azul-amarelo era muito peculiar. Enquanto que contra qualquer outra gralha ele sempre ficava do lado da noiva, era óbvio que no caso ele se encontrava num conflito. Bem que ele ameaçava a Verde-esquerda, mas nunca praticou um ato de violência contra ela. Reparei que às vezes ele fazia ameaças leves em direção da Vermelho-direita também. Sua timidez e seu “embaraço” eram evidentes nesse conflito.

O final do romance foi rápido e dramático: Certo dia de manhã dei por falta do Azul-amarelo e, com ele, da Verde-esquerda! Certamente, ambas as aves adultas e experientes, não teriam se acidentado ao mesmo tempo. Sem dúvida, simplesmente partiram. Nos animais, como nos homens, situações de conflito são torturantes. Assim, acho que não seja improvável que tenha sido o conflito de emoções incompatíveis que levou a gralha macha para o desconhecido.

Que algo semelhante tenha jamais ocorrido entre casais antigos, nunca vi.

Eu acho que isso não ocorre nunca. Todos os casais de gralhas com ninhadas que pude observar por longo período, absolutamente todos se mantiveram unidos até a morte. Viúvos e viúvas, porém, casam novamente, caso encontrem um parceiro adequado, o que não é tão fácil para as fêmeas mais velhas e com posição superior.

No segundo ano de vida as gralhas são capazes de se reproduzirem. No fundo, já o são no seu segundo outono, logo depois da segunda troca de penas, quando renovam não só a penugem do corpo como também as plumas voadoras e da cauda. Nessa época, em dias lindos de outono, a disposição de reprodução desses animais é evidente, principalmente “a disposição de cavar ninhos”. O já descrito “Zick, zick” é então ouvido por toda parte. Quando porém o tempo esfria novamente essa “falsa primavera” após a troca de penas declina novamente, mas a disposição de reprodução fica latente. Por isso é que em alguns dias quentes no inverno ouvimos pela chaminé uns tímidos “concertos de Zick”. Em fevereiro e março, porém, já é sério, e então o Zick-zick não tem mais fim. Nessa época acontece às vezes uma cerimônia, que é talvez a mais interessante na vida das gralhas.

Nos últimos dias de março quando o Zick alcança o ponto máximo, em algumas cornijas ou chaminés aumenta o concerto até alcançar proporções inusitadas. Simultaneamente muda de tonalidade, fica mais baixo e cheio e soa como se agora fosse um “Iup, iup, iup” e que é entoado com maior rapidez e freqüência que o “Zick,zick” comum e que no final da estrofe alcança um verdadeiro delírio. Ao mesmo tempo, de todas as partes outras gralhas vêm chegando até o nicho e numa excitação máxima, com as penas encrespadas e posição ameaçadora participam desse “concerto Iup”.

O que significa tudo isso? Algo impressionante: a invenção de todos em comum contra um perturbador do sossego! Para entender melhor essa forma de reação social, inata e totalmente instintiva, temos de descer a muitos detalhes.

Em geral, uma gralha que se encontra no ninho e faz o “Zick” não é atacada facilmente, porque qualquer outro atacante se encontrará em desvantagem frente a ela. A gralha porém tem duas posições diferentes de ameaça que se distinguem plenamente pela sua forma e significado. Se a briga for exclusivamente de ordem social, os rivais se ameaçam em uma posição bem ereta e com as penas coladas no corpo. Essa posição significa uma ameaça de voar para cima e sobre as costas do adversário. Daí se desenvolve uma forma de luta muito comum entre outras tantas aves, na qual os parceiros ficam voando para o alto, tentando sempre ultrapassar o outro e jogá-lo de costas. A outra posição de ameaça que a gralha toma é o oposto dessa: a ave se abaixa colocando a cabeça e o pescoço bem para baixo, arredondando as costas e arrepiando todas as penas. A cauda fica puxada em direção do adversário, abanando. Tanto quanto pode, o pássaro aumenta o seu volume.

A primeira posição de ameaça significa: “Se você não sair logo daí atacarei voando”, a segunda, porém, diz: “Daqui não saio e me defenderei até a morte”. Quando um pássaro de posição superior ameaça um subordinado com a primeira posição e esse, por sua vez, reage com a segunda, o superior em geral se retira. Só no caso de dar valor ao lugar é que ele continuará lutando e para tanto tomará ele também a segunda posição de ameaça. Assim eles permanecem por um longo período frente a frente, virando para o adversário o lado do corpo com a asa correspondente aberta em leque. No caso, eles nunca chegam a atos concretos, senão sentados dão ferozes e fortes bicadas em direção do inimigo, com um bufar audível. Só uma questão resolve tais brigas: quem agüenta mais tempo.

Portanto, toda a cerimônia de Zick está obrigatoriamente ligada a esta posição de ameaça em defesa do lugar. A gralha não é capaz de emitir o som do “Zick” numa outra posição! Como no caso de todos os animais que delimitam suas “zonas”, a “propriedade de um território” na gralha se baseia no fato de a ave lutar com muito maior intensidade “em casa” do que em território estranho. Assim, ao fazer o zick na própria caverna do seu ninho, qualquer gralha está de início com uma vantagem enorme contra qualquer intruso; isso compensa em geral mesmo as maiores diferenças de posição que existem entre os sócios de uma colônia.

A forte concorrência pela propriedade de uma caverna para o ninho faz que às vezes aconteça uma ave mais forte atacar uma mais fraca em sua caverna e surrá-Ia seriamente. E é para esse caso raro e excepcional que existe esse comportamento social imediato que denominei “a reação de iup”. O “zick” do ameaçado, o dono do ninho, vai aumentando vigorosamente, transformando-se então em um "Iup". Se a esposa ainda não tiver chegado para ajudar, aí corre agora com as penas arrepiadas, se afina ferozmente entoando o iup e ataca o intruso. Se este, porém, não se arredar logo, ocorre o inacreditável: todas as gralhas que se encontram numa distância audível, de repente, e entoando fortemente o "iup" caem sobre o ninho do ameaçado, e a luta se transforma num novelo fechado que entoa o "iup" numa orgia crescente, acelerada e fortíssima. Depois de descarregar toda sua excitação, os pássaros, sossegados, separam-se e então só se ouve os donos do ninho fazerem o "zick" bem baixinho em sua casa já não mais ameaçada.

Para apaziguar uma briga já é suficiente que algumas gralhas se juntem, correndo. Principalmente porque o atacante original também "entoa o iup"! Para quem observa Isso e compara com os homens, o perturbador parece querer habilmente desviar de si a suspeita como se grilasse: “Peguem o ladrão!” Na verdade, o agressor é simplesmente tomado pela excitação do “iup” sem saber que é ele o causador do tumulto. Assim, entoando o “iup” de se vira em todas as direções, como se procurasse o perturbador. E, na verdade ele o procura mesmo.

Porém, vi várias vezes que o agressor era reconhecido pelos outros companheiros da colônia e, conforme as circunstâncias, mais tarde, exemplarmente castigado. No ano de 1928 o verdadeiro déspota da colônia de gralhas era um pega; essa ave que não é sociável e superava muito além, na força física, cada gralha em si, penetrava brutalmente nas cavernas do ninho de vários casais de gralhas, provocando o fenômeno do “iup”. Apesar de a pega não possuir “órgão” para perceber o sentido da “reação do iup” e continuasse a luta desinibidamente, certa vez apanhou tanto das gralhas, que logo se desacostumou de penetrar nos ninhos das gralhas e nunca fez nenhum mal a nenhuma ninhada de gralhas, coisa que eu temera seriamente. Em primeiro lugar são os velhos e fortes machos superiores que representam o papel principal nessa reação de chilrear no “iup”, como também em outros sentidos cuidam da comunidade.

No outono de 1929 um enorme bando de gralhas e corvos de semeadura em arribação, instalou-se nos campos próximos da nossa casa. Eram uns 150 a 200 mais ou menos.

E tanto as minhas jovens gralhas desse ano, como as do ano anterior, se misturaram no bando, que era impossível reconhecê-Ias e achá-Ias! Somente algumas aves mais velhas ficaram em casa. Eu encarava a situação como uma verdadeira catástrofe, pois via desaparecer o trabalho de dois anos, sabendo quão forte era a atração de um bando em arribação sobre jovens gralhas. Essa enorme quantidade de pares de asas pretas exercem uma espécie de embriaguez de querer voar junto; sem a presença do Amarelo-verde e do Azul-amarelo, realmente o trabalho de dois anos teria sido aniquilado. Esses dois machos velhos, os únicos dessa idade na colônia, voavam sempre de casa até os campos. Ali faziam algo inacreditável, que até eu que estou descrevendo começo a duvidar se não tivéssemos comprovado repetidamente o comportamento dos velhos até mesmo com experiências. Os velhos machos catavam entre o enorme e misturado bando um dos “nossos”. E, tal como os pais fazem os filhotes voarem caso estes se encontrem em algum lugar perigoso, eles faziam com a “nossa gralha”: o pássaro velho voa por trás bem em cima das costas do jovem, e quando se "encontra perpendicularmente sobre ele, faz com a cauda um movimento lateral de direção bem fechada. Essa “cerimônia” arrasta consigo a ave sentada quase numa reação segura de reflexo. Como já havíamos visto em Tschok, o Verde-amarelo e o Azul-amarelo também fizeram assim. Devagar, voavam na frente do pássaro jovem, que iam acompanhando até em casa “como se fosse na coleira”. Durante todo esse procedimento, os machos velhos emitiam um chamariz especial que se distingue claramente do chamariz claro e agudo das gralhas pelo seu tom surdo, escuro e prolongado. Se o grito normal se assemelha a um “Kiá” bem claro, esse chamariz especial soa como um “Kiu” ou “Kió”. Eu já havia ouvido esse grito, mas só então decifrei o seu significado.

Os dois velhos machos trabalhavam com dedicação. Cães-pastores treinados não são mais diligentes e hábeis ao reunirem ovelhas desgarradas de um bando enorme. Trabalharam sem cessar, noite adentro quando as gralhas normalmente, já se encontram no lugar onde dormem. Sua tarefa não era nada simples, pois os jovens atraídos com tanto esforço para casa não estavam muito dispostos a ficar e tentavam sempre retomar para o bando nos campos. De dez jovens trazidos para casa, nove retornavam voando; mas no final do anoitecer – numa arribação as gralhas dormem bem mais tarde que em casa – quando finalmente o bando em arribação levantou vôo seguindo seu caminho, pude constatar aliviado que, de todas as nossas gralhas, só faltavam duas.

Esse acontecimento impressionante deixou-me mais alento para os vários significados de “Kiá” e “Kiu”. Breve consegui entendê-Ios. Ambos são chamarizes para atrair: “Voe junto!” Sendo que a gralha emite o “Kiá” quando “está com vontade de voar”, isto é, sair da colônia. No “Kiu” a acentuação está na direção: “para casa”. Eu também havia notado que as gralhas, quando em bandos de arribação, gritavam mais alto que as minhas aves. Agora eu entendia por quê. Longe de casa e livre da colônia de sua ninhada, falta à gralha o “Kiu” que expressa a disposição de voar para casa. Assim, na maioria das vezes só se ouve o grito de deslocamento: “Kiá”. Com relação a isso seria interessante constatar se o “Kiu” surge quando, por ocasião da primavera, os bandos retornam aos lugares de origem. No entanto, durante o inverno só se ouve o puro e curto “Kiá” emitido pelas aves passageiras, enquanto que entre o bando das minhas aves, nesta época do ano e nas proximidades da colônia, nasce uma certa disposição de retomo para casa.

Esses chamarizes, “Kiá” e “Kiu”, são unicamente expressões da disposição da própria ave e nunca um convite consciente para voar ou voltar para casa. Apesar disso, essa expressão despropositada tem um efeito contagiante, da mesma forma que o bocejar entre os seres humanos. Só que “esse contágio mútuo” faz que todas as gralhas façam o mesmo, por exemplo, que retomem juntas para casa. A “votação” pode demorar muito, e para os homens, o comportamento dos animais parece ser muito indeciso, e até que há motivo para se pensar assim, pois é exatamente essa capacidade de decidir uma ação que falta aos animais, isto é, tolher todos os outros impulsos existentes em favor de um único. Um observador é capaz de ficar nervoso ao ver um bando de gralhas sacudido durante meia hora na indecisão entre o “Kiá” e o “Kiu”. A alguns quilômetros de casa, o bando se encontra pousado sobre os campos. Já deixaram de procurar comida e breve os pássaros recomeçam o vôo de retomo, mas “breve” só no sentido das gralhas. Finalmente, alguns pássaros velhos emitem o “Kiu” e levantam o vôo, na maioria das vezes aves com reação boa, arrastando consigo todo o bando para cima. No ar, no entanto, constatam que muitos companheiros do bando ainda estão na disposição do “Kiá”, então, sem cessar os gritos de “Kiá” e “Kiu” o bando circula, aterrissando novamente sobre o campo, às vezes até mais longe de casa do que antes. Isso se repete uma dúzia de vezes, até que aos poucos o “Kiu” vai aumentando em volume, e só ao conseguir a maioria é que a disposição do “Kiu” toma proporções de avalancha, fazendo com que as aves retomem para casa em vôo “uníssono”, no verdadeiro sentido da palavra.

Após alguns anos uma catástrofe, cuja origem não foi esclarecida até hoje, ocorreu na minha colônia de gralhas.

Para evitar as perdas da arribação no inverno, eu mantinha minhas aves presas numa gaiola de novembro até fevereiro. Como na época eu morava em Viena, um empregado – que era tido como consciencioso – cuidava delas. Certo dia, porém, desapareceram todas. A grande gaiola estava com um buraco que pode ter sido feito pelo vento, duas gralhas estavam mortas e as outras tinham sumido. Talvez tenha sido uma fuinha. Eu não sei.

Essa foi a pior perda que me atingiu e aos meus esforços de como cuidar de animais.


Apesar de tudo deu resultados bons, isto é, forneceu observações que de outra forma teriam sido impossíveis fazer. Esses benefícios começaram a se apresentar em três dias, quando uma gralha voltou inesperadamente: a Vermelho-amarela, a rainha de outrora, a primeira gralha que chocou e criou os filhotes em Altenberg.

Por amor a ela, para que não se sentisse tão só, criei novamente quatro filhotes de gralhas e quando já podiam voar coloquei-os na gaiola especial de vôo, junto da Vermelho-amarela. Porém na pressa, e ocupado com mil coisas mais, não reparara que essa gaiola também tinha um buraco grande na tela. E antes que se acostumassem à Vermelho-amarela,os quatro filhotes escaparam de uma só vez: num bando cerrado, procurando em vão um guia entre si, circulavam sempre mais e mais alto até que desceram no alto de uma colina, longe de casa, entre faias rachadas.Eu não poderia chegar perto deles e como ainda não estavam acostumados ao meu grito para voarem em minha direção, eu não tinha esperança alguma de voltar a revê-Ios. É certo que a Vermelho-amarela poderia tê-Ios trazido para casa com os seus gritos de “Kiu”; os antigos “cônsules” de uma colônia sempre se preocupam com “qualquer” jovem sócio da colônia que esteja a ponto de se perder no vôo, a Vermelho-amarela ainda não considerava os quatro jovens companheiros de colônia, pois não chegara a ficar junto deles nem a metade de um dia. Então, no meu desespero, tive uma idéia genial!

Retomei ao sótão e logo estava engatinhando. Debaixo do braço trazia uma bandeira enorme, amarelo e preta, que tantas vezes ondulara no alto da casa de meu pai, por ocasião do aniversário do velho imperador Francisco José. Então, de pé no meu teto de estanho, bem perto do pára-raios, desesperado eu agitava esse anacronismo político... O que é que eu queria com aquilo! Com essa coisa assustadora eu tentava fazer com que a Vermelho-amarela levantasse um vôo bem alto e fosse vista pelos filhotes que estavam na floresta, para que eles começassem a chamar. Eu acreditava que assim a velha responderia com uma reação de “Kiu” e buscaria de volta para casa os extraviados.

Lá em cima no alto a Vermelho-amarela circulava, mas ainda não era suficientemente alto. Eu emitia gritos de índio, um atrás do outro, abanando como um doido o estandarte de Francisco José. Na rua da aldeia pessoas começaram a se aglomerar. Apesar disso deixei minhas explicações para mais tarde e continuei a gritar agitando. Aí a Vermelho-amarelo subiu alguns metros. Da colina uma das jovens gralhas emitiu um chamado. Interrompi a agitação da minha bandeira e, ofegante, olhei para cima onde a velha gralha circulava. E, por todos os deuses de cabeça de ave do Egito, ela modificou o bater de suas asas, começando a subir novamente, e com muita decisão tomou a direção da floresta chamando “Kiu, Kiu”...voltem, voltem! Com a maior rapidez possível, dobrei a bandeira e como um fugitivo desapareci pelo buraco do sótão adentro.

Daí a dez minutos todos os quatro filhotes estavam em casa junto com a Vermelho-amarela. Ela estava tão cansada como eu. Mas daí em diante ela cuidou com dedicação dos quatro jovens, não os deixando escapar nunca mais. Desses quatro filhotes de gralha desenvolveu-se, com o passar dos anos, uma colônia de gralhas bem populosa que tinha uma mulher no comando, a própria Vermelho-amarela. Como a diferença de idade entre ela e os outros companheiros da colônia era muito grande, ela tinha mais “autoridade” entre as gralhas do que comumente um déspota consegue ter. Na capacidade de conservar o seu bando, Vermelho-amarela ultrapassou qualquer outro dominador que antes houvera na minha colônia. Ela cuidava fielmente de todas as jovens gralhas, para todas era mãe, pois ela mesma não tinha filhotes.


Seria talvez interessante terminar aqui o romance da vida da gralha Vermelho-amarela: A virgem e abnegada protetora do bem comum... Isso não daria um final feio. Mas o que realmente acontecerá é um happy-end tão irreal que quase não tenho coragem de contar.

Três anos depois da catástrofe com as gralhas, num lindo dia que antecipa a primavera, cheia de vento, um verdadeiro dia para as aves em arribação, lá no alto do céu passavam um após o outro bandos de gralhas e corvos de semeadura, quando de um desses bandos algo sem asas e parecendo um projétil em forma de torpedo se desprendeu, precipitando-se para baixo. Mas, bem próximo do teto de nossa casa esse projétil transformou-se numa ave, amaciando a queda com um leve impulso e aterrissando de leve sobre o nosso cata-vento. Ali estava uma enorme gralha macha com as penas de um azul-brilhante, e a nuca sedosa e quase branca, como eu nunca havia visto em gralha alguma.

E sem qualquer golpe Vermelho-amarela, a rainha e déspota, capitulou. Essa mulher-macho que tinha mania pelo poder transformou-se rapidamente numa mocinha tímida e submissa que abanava o rabo graciosamente e tremia com as asas, como qualquer jovem gralha noiva. Algumas horas após a chegada do macho já eram uma só alma e coração, comportavam-se como se fossem um casal antigo. Foi interessante observar que esse macho grande não teve que enfrentar quase que nenhuma luta com outras gralhas. Seu reconhecimento pela déspota deu-lhe legitimidade e foi aceito como o “número um” por todos os companheiros da colônia. Algo semelhante só conheço entre cães!

Eu não tenho provas científicas incontestáveis de que aquele velho macho não era a gralha Verde-amarela, o marido desaparecido de Vermelho-amarela. Os anéis multicolores de plástico quebraram e caíram há tempos, mesmo a Vermelho-amarela já os havia perdido. Mas não havia dúvida que a ave era um antigo sócio da colônia, o que demonstrava pela naturalidade e mansidão com que penetrava no interior do sótão. Outras gralhas que se criaram fora, mas que se instalavam na nossa colônia, tinham um procedimento bem diferente.

Era certo que ele fazia parte dos quatro ou cinco “cônsules” mais velhos da primeira colônia. Porém acho – e espero – que o velho lutador era realmente o Verde-amarelo.

Os dois ainda chocaram e criaram muitas jovens gralhas. Hoje, em Altenberg existem mais gralhas que buracos para os ninhos. Em cada buraco de muro, em cada chaminé existe um ninho.

Muitos anos antes da última guerra mundial, meu pai escrevera sobre as gralhas de Altenberg em sua autobiografia: “Perto do anoitecer, bandos desses companheiros pretos sobrevoam a alta cumeeira e se comunicam com gritos penetrantes. Às vezes tenho a impressão de entendê-los: “Como fiéis companheiros de todos os tempos da terra natal sobrevoaremos nossos ninhos enquanto ainda houver pedra sobre pedra que nos garanta proteção.”

Companheiros de todos os tempos! Realmente, há um algo de clássico na gralha que agrada de uma forma especial a nossa alma. Seja no outono ou num dia mais quente do inverno quando entoam e afinam sua canções de primavera, ou quando fazem suas brincadeiras com a força do temporal, as gralhas têm sempre para mim algo daquele sentimento dos pinheiros na neve ou do corruiraçu em dias de geada, esse sentimento que toma o pinheiro o símbolo da esperança e do eterno.

Tschok há muito desaparecera, surpreendido por um destino desconhecido. Vermelho-amarela, já em idade avançada, foi morta pela espingarda de um querido vizinho: encontrei-a morta no jardim... Apesar de tudo a colônia das gralhas em Altenberg ainda vive. As gralhas sobrevoam Altenberg, e seguem voando os mesmos caminhos que Tschok descobrira, usando os mesmos locais com redemoinhos para levantar vôo, cuja utilidade foi Tschok quem primeiro aprendeu. Eles conservam fielmente todas as tradições que já dominavam na primeira colônia e que, através de Vermelho-amarela, foram salvas até agora...

Como seria grato ao destino se encontrasse em minha vida um único caminho que depois de mim fosse seguido por gerações de semelhantes, que no futuro, nem que fosse como um "redemoinho" ajudasse o homem a “ganhar altura”.