sábado, janeiro 20, 2007

I - Dissabores com animais

Por que começo falando logo do lado cinzento da vida em comum com animais?

Porque a dimensão dessa disposição para tolerar esse inconveniente, fazer sacrifício, também é uma extensão do amor ao animal. Sinto uma extrema gratidão por meus pais, que só balançavam a cabeça ou suspiravam, consentindo, quando, jovem colegial, eu chegava a casa trazendo mais um novo companheiro, que provavelmente causaria alguns danos. E durante todos esses anos o que não tolerou a minha mulher! Pois, quem poderia exigir da esposa que um rato manso corresse livremente pelo apartamento, roendo pedaços dos lençóis para forrar seu ninho? Ou uma cacatua que arranca todos os botões da roupa no varal? Ou um ganso selvagem manso que dorme no quarto, e que, pela manhã, sai voando pela janela? (E observe-se que gansos selvagens não são asseados!) Ou que diria uma outra mulher ao notar que os lindos pontinhos azuis espalhados pelos móveis e cortinas são manchas que não saem nunca mais? Eram de avezinhas cantoras que haviam se deliciado nos bagos de um sabugueiro! Ou que diria ela se... bem, e assim por diante pelo menos mais umas vinte páginas!

Os senhores me perguntarão: mas tudo isso é absolutamente necessário?Minha resposta é um SIM claro e alto. Seguramente pode-se manter animais em bonitas gaiolas, mas conhecer animais superiores e de espírito vivo é somente possível deixando-os livres. Como é pobre, interiormente mutilado, um macaco ou um papagaio grande criado em gaiola; e como é vivo, interessante, esse mesmo animal em liberdade total! Nesse caso, é bom preparar-se para aborrecimentos e prejuízos. Sempre foi especialidade minha, por motivo de método científico,manter os animais superiores em absoluta liberdade, como também grande parte de minhas pesquisas foi feita com animais mansos e em liberdade. A grade da gaiola em Altenberg tinha uma função inversa à normal: ela impedia que os animais chegassem a casa e ao quintal. Também era-lhes proibido ficar dentro do cercado que contornava os canteiros. Mas, como para qualquer criança, essa proibição exercia um magnetismo sobre esses inteligentes animais. Além do mais, os fiéis gansos selvagens exigiam a companhia humana. Assim, sempre tomava a acontecer, antes que se percebesse que vinte a trinta gansos selvagens pastavam nos canteiros em flor, ou, pior ainda, avançavam pela varanda adentro grasnando sua saudação. Bem, é dificílimo manter uma ave que voa e que não teme as pessoas longe de determinado lugar. Nesse caso nem gritos, nem gesticulações ajudam. Só restou uma maneira eficaz de assustá-los: um enorme guarda-sol vermelho. Como um guerreiro com sua lança, minha mulher pulava com o guarda-sol sob os braços em direção dos gansos selvagens, quando, mais uma vez, eles começavam a pastar nos canteiros recém-plantados. Ela abria o guarda-sol acompanhado de um grito de guerra. Até para os nossos gansos isso era demais, e num rumorejar levantavam vôo. Infelizmente, meu pai aniquilava todas as medidas pedagógicas incutidas nos gansos por minha mulher. O velho senhor amava os gansos cinzentos, principalmente pelo comportamento cavalheiresco dos machos; portanto ele não abria mão de convidá-los diariamente para o café da manhã na varanda. Como nessa época ele já não enxergava muito bem, só notava as conseqüências materiais de tais visitas ao pisar nelas. Para meu espanto, certo dia à tarde, indo ao jardim, quase não encontrei gansos. Com meus pressentimentos corri até o escritório de meu pai e vejam: reunidos ao redor de meu velho sobre um tapete persa maravilhoso, encontravam-se 24 gansos. Ele bebericava seu chá lendo o jornal e oferecendo pedaços de pão às aves, as quais um pouco nervosas nesse ambiente estranho, reagiam de modo desagradável à situação com os intestinos. Tal como outros animais que precisam digerir fibras vegetais, os gansos têm um apêndice muito desenvolvido onde são aproveitadas as bactérias que selecionam a celulose. Normalmente, para seis a oito excreções intestinais ocorre um do conteúdo do apêndice que apresenta cheiro penetrante e coloração verde-escura. Estando o ganso selvagem nervoso, a excreção do apêndice passa a ocorrer seguidamente. Desde essa visita dos gansos já se passaram mais de onze anos; as manchas verde-escuras do tapete ficaram amareladas.

Assim os animais viviam em absoluta liberdade e familiarizados com nossa casa. Eles sempre queriam vir a nós e nunca ir de nós. Em algum outro lugar, quando se grita: "O pássaro escapou da gaiola, fechem logo as janelas", aqui em casa se diz: "Por Deus, fechem as janelas que a cacatua (ou o corvo, o Maquis Mococo, o macaco-capuchinho) quer entrar!" O emprego mais bonito da "ação inversa da grade" foi minha esposa que inventou, quando nossa primeira filha ainda era muito pequenina. Naquela época tínhamos animais grandes e resistentes: corvos (Corvus corax), duas cacatuas reais, dois Maquis Mococos e um macaco-capuchinho que, principalmente os corvos, não podiam ficar a sós com a criança. Assim sendo, minha esposa construiu uma grande gaiola no jardim, colocando o cercado com nossa filha lá dentro.

Nos animais superiores a capacidade e a inclinação de causar danos está, infelizmente, na proporção direta de seu nível espiritual. Por isso, não convém deixar em liberdade, sem fiscalização, os macacos, principalmente. No caso de primatas lemuróides, ainda mais em se tratando do querido maquis mococo, que durante muitos anos foi nosso alegre companheiro doméstico, isso é possível porque eles não têm interesse real em utensílios de casa. Macacos verdadeiros, porém, desde os oriundos de classes inferiores como os do Novo Mundo (platirrinos), interessam-se ardorosamente por qualquer objeto novo e fazem "experiências" com ele. Isso do ponto de vista da psicologia animal é interessantíssimo mas, por um período contínuo, numa casa se torna insustentável financeiramente.

Contarei um caso, para ilustrar.

Quando jovem universitário em Viena, no apartamento de meus pais, eu tinha um belo exemplar de macaco capuchinho (Cebus fatuellus), uma fêmea que se chamava Glória. Ela habitava uma espaçosa gaiola em meu quarto. Quando eu ficava em casa e podia vigiá-la, era-lhe permitido correr livremente pelo quarto; se precisasse sair, eu a prendia na gaiola em que ela se aborrecia muito e tentava escapar de qualquer maneira. Certo dia, à noite, depois de uma ausência prolongada, retomei para casa e tentei acender as luzes, mas tudo ficou escuro como estava; o alegre cantarolar de Glória, que não vinha da gaiola mas sim de cima do trilho da cortina, não me deixou nenhuma dúvida sobre a causa da pane na corrente elétrica. Ao voltar com uma vela acesa, deparei com a seguinte cena: Glória havia conseguido arrastar o pesado abajur de bronze da mesa de cabeceira até o meio do quarto (infelizmente não desligou a tomada) jogando-o violentamente sobre o aquário, quebrando o vidro protetor deste e fazendo a lâmpada sumir na inundação. Daí o curto-circuito! Então, ou talvez já antes, Glória conseguira abrir a fechadura de minha estante, trabalho surpreendente se considerarmos as dimensões diminutas da chave, tirou os volumes 2 e 4 do manual de Medicina Interna de Strümpel, levou-os até o aquário, picou todas as folhas e jogou-as dentro dele. No chão só restavam as capas limpinhas, mas nenhum pedacinho de papel. No aquário, as tristes anêmonas com os tentáculos cheios de papel...

O mais interessante nesse acontecimento foi a relação material dessa "brincadeira de experimentar": o macaco, com certeza, ocupou-se longamente com sua missão; para um animal tão pequeno tem que se aprovar o trabalho realizado. Pena que tenha saído um pouco caro!

Mas o que fica de positivo nesses aborrecimentos sem fim e dispendiosos com os nossos livres companheiros domésticos?

Nem se fale da necessidade, por motivos metódicos para a análise psicológica, de se ter animais de espírito são, sem a influência negativa do cativeiro. O animal solto proporciona um estímulo indescritível, pois, mesmo podendo fugir, fica por afeição. Quando em meus passeios pela margem do Danúbio, ouço o grito sonoro de um corvo que, em resposta ao meu grito, encolhe as asas lá no alto do céu, desce num vôo rasante e pousa suavemente no meu ombro, sinto-me compensado por todos os livros picados e os ovos de pato que pesam na consciência dos corvos. A mágica dessa aventura não diminui, mesmo quando um pássaro como o corvo de Wotan se torna um companheiro doméstico tão comum como para outras pessoas um cachorro ou um gato. Pois o animal, ao adquirir confiança, não só proporciona o que naquele instante seu destino lhe oferece como também as lembranças que me vêm à mente. Num dia cinzento que antecede a primavera desci até o rio Danúbio. Ao longo do leito de inverno ainda estreito e escuro da corrente desciam bandos de patos do mato, gansos das searas, médios e anões, gansos de semeadura e, entre eles, como se devesse ser, um bando de gansos cinzentos europeus. Noto a falta de uma pena no ganso que voa como segundo na formação da parte esquerda do triângulo. Então, de repente, me lembro de tudo sobre esse ganso, da pena que lhe faltava e do acidente em que a perdeu. Pois é claro que esses são os meus gansos cinzas que aí voam, não há outros nas margens do Danúbio nem na arribação.

O segundo ganso na parte esquerda do triângulo é o Martim. No tempo da minha gansa Martina ele noivou com ela, e por isso é que foi batizado de Martim (antes ele era somente um número, já que só os gansos que eu criava recebiam nomes). Nos gansos cinzentos o noivo acompanha todos os passos da noiva. Como Martina andava livremente e sem medo algum por toda a casa, sem considerar os receios do noivo que se criara no campo, ele se via na obrigação de aventurar-se pelos aposentos desconhecidos. Quando se conhece quanta inibição há nesses gansos cinzas, aves de superfícies livres, até de se aventurarem por entre arbustos ou debaixo de árvores, então Martim parecia-nos um pequeno herói acompanhando sua adorada, com o pescoço alongado pela porta adentro até a saleta e depois pela escada até o quarto de dormir. Eu ainda o vejo de pé no meio do aposento, com as penas coladas ao corpo, o bico aberto, tremendo de ansiedade, mas assoviando alto como se desafiasse um desconhecido para a luta. Então, de repente, a porta atrás dele bateu fortemente com grande barulho. Mesmo em se tratando de um ganso corajoso, não se podia esperar que ficasse parado. Ele levantou vôo, indo parar dentro do lustre de cristal, que perdeu vários penduricalhos.O cavalheiro Martim, porém, ficou sem uma pena.

Bem, isso eu sei da pena do ganso que voa como segundo na parte esquerda da formação, mas sei também algo mais consolador. Sei que agora, ao chegar à casa, encontrarei os gansos na escada da varanda a me cumprimentarem com os seus pescoços alongados, o que no ganso tem o mesmo significado do que o abanar do rabo no cachorro.

E enquanto eu ainda olho os gansos em seu vôo rasante sobre a água, e os vejo sumirem na próxima curva, sou tomado, de repente, pela admiração do que me é familiar, que é o ato de nascer da filosofia. E me surpreendo como foi possível chegar a tanta intimidade com uma ave que vive na natureza, e sinto essa realidade como algo muito confortador, como se através dela voltasse a ter ao alcance uma pequena parte do Paraíso de onde fomos expulsos.

Em Koenigsberg, onde por último lecionei na universidade, os corvos se foram, os gansos emigraram não sei para onde. De todas as minhas aves livres voadoras só me restaram as gralhas. Essas foram as primeiras que domiciliei em Altenberg. Esses companheiros de todos os tempos circundam em vôos a alta cumeeira, e seus gritos, cujo sentido conheço em todos os detalhes, descem pela chaminé abaixo até o meu gabinete. E ano após ano seus ninhos sempre entopem os fumeiros, e temos aborrecimentos com os danos que causam nas cerejeiras dos vizinhos.

Será que se entende que não é somente o resultado científico que retribui todos os aborrecimentos e custos, e sim outras coisas, que valem muito mais?