domingo, janeiro 21, 2007

II - Algo que não faz estrago: o aquário

Não custa quase nada, e é maravilhoso: cubra o fundo de um recipiente de vidro com um bocado de areia pura, coloque uns ramos de plantas aquáticas comuns, encha cuidadosamente com um litro de água de bica e coloque tudo no parapeito de uma janela ensolarada. Assim que a água ficar límpida e clara e as plantinhas começarem a crescer, ponha dentro alguns peixes, ou melhor, vá munido de um vidro vazio e um coador até o mais próximo charco e, após algumas tentativas, terá uma porção de organismos em sua rede.

Toda a mágica da infância até hoje está para mim em um desses coadores, que obviamente não precisa ser um instrumento perfeito com arco de latão e forro de gaze, senão como manda a tradição, feito por nós mesmos em dez minutos, usando-se um arame cru para o aro e fazendo o saquinho de uma velha meia, cortina ou fralda. Com um instrumento desses aos nove anos de idade, pegando as primeiras dafniláceas para meus peixes, fiquei fascinado pela maravilha do mundo do charco de água doce. O coador tem que ser acompanhado de uma lupa, a qual por sua vez exige a presença de um modesto microscópio, e assim ficou selado o meu destino. Pois quem viu a beleza com os olhos não será deixado com a morte, como diz Platão e sim com a natureza cuja beleza compreendeu. E se realmente tem olhos, então será sem dúvida um naturalista.

Assim, pelo charco adentro você irá colhendo com sua rede entre as plantas, ficando com os sapatos cheios d'água e de lama. Se sua escolha foi certa e você encontrou um charco em que "há algo" então no fundo de sua rede estarão vários seres transparentes se retorcendo. Então vire a ponta da rede dentro do vidro que já deverá estar cheio d'água. Em casa entorne com cuidado dentro do aquário e observe o pequeno mundo que você tem diante dos olhos e das mãos. O aquário é um mundo. Como num charco ou lago natural, bem como em todo o nosso planeta, no aquário a vida animal e a vegetal vivem em absoluto equilíbrio biológico: a planta absorve o gás carbônico exalado pelos animais e de sua parte produz oxigênio.É errado afirmar que a planta não respira como o animal e sim pensar que faz "o contrário". Sua respiração é idêntica: inspira oxigênio e exala gás carbônico; mas além disso a planta em crescimento aproveita o gás carbônico, pois precisa do carbono para se desenvolver expelindo ao mesmo tempo o oxigênio em quantidade bem maior do que necessita para respirar. E dessa sobra de oxigênio é que vivem os animais e os homens. Além disso as plantas aproveitam os excrementos e cadáveres dos seres vivos incorporando suas matérias no grande ciclo da vida.

Qualquer desequilíbrio desse ciclo da matéria, entre a vida dos seres animais e vegetais, traz conseqüências terríveis. Quem, adulto ou criança, já não passou pela tentação de colocar só mais um peixinho no recipiente que já se encontra com a lotação máxima de animais em relação à capacidade dos vegetais.Exatamente esse único peixinho a mais pode acabar com a vida cuidada, com tanto carinho e amor, do aquário. Porque, contendo animais em excesso, sobrevém a falta de oxigênio.Conseqüentemente, sucumbe algum organismo cuja morte talvez nem notemos. A putrefação ocasiona uma multiplicação de bactérias no aquário, a água fica turva, diminuindo ainda mais o teor de oxigênio, o que ocasiona a morte de mais animais. Então, como uma avalancha, a destruição se apodera de tudo e finalmente a vegetação também apodrece e o que há alguns dias atrás era um lago claro, cheio de vegetação exuberante, transforma-se numa poça malcheirosa.

O amante de aquário experiente enfrenta tais perigos com arejamento artificial da água. Só que esses recursos técnicos diminuem o verdadeiro charme do aquário que está exatamente na autoconservação desse mundo aquático, não havendo nenhuma necessidade de ajuda biológica adicional além da alimentação normal dos animais e a limpeza do vidro frontal do recipiente. Quando há um equilíbrio certo, o aquário não necessita de limpeza. Desistindo-se de peixes grandes, principalmente aqueles que revolvem o chão não há mal algum que depois de algum tempo se forme no fundo uma camada de lama dos resíduos animais e de plantas mortas. Isso é até desejável porque com sua penetração fertiliza o solo que originariamente era estéril. Apesar da lama, a água continua cristalina e inodora, como em qualquer lago nos Alpes.

No sentido biológico, o ideal é começar um aquário na primavera com poucas mudinhas de plantas. Pois somente essas plantas criadas nesse recipiente é que durarão; vegetação adulta que se colocar no aquário perde muito em beleza. Dois aquários separados' só por um palmo de distância são dois indivíduos caracterizados como dois lagos distantes um do outro. É exatamente isso o maravilhoso num novo aquário. Ao prepará-lo nunca se sabe quando alcançar-se equilíbrio individual. Vejamos o que aconteceria se preparássemos ao mesmo tempo e com os mesmos materiais três aquários colocados um ao lado do outro numa estante. Plantaríamos neles Helobiales e Myriophyllum. No primeiro logo se alastraria uma selva das Helobiales, desalojando as frágeis Myriophyllum; no segundo aconteceria algo semelhante com as Helobiales; no terceiro as duas espécies se tolerariam e, como se viesse do nada, se desenvolveria uma bela vegetação, frágil e com formas de candelabro à base da delicada alga verde, Nitella flexilis. Mesmo com as qualidades biológicas idênticas e nas mesmas condições de preparo, mesmo com animais variados e propícios, cada um dos três aquários teria se desenvolvido diferentemente, formado o seu mundo.

É necessário muito autocontrole e delicadeza para deixar um aquário "à sua vontade"; mesmo as intervenções mais bem intencionadas podem causar muitos danos. É claro que se pode preparar um "lindo" aquário com um fundo artificial e plantas escolhidas; um filtro evitará a formação de lodo e o arejamento artificial permitirá manter um número superior de peixes, o que será impossível sem tais ajudas. Neste caso as plantas são somente decoração, os animais não necessitam delas, recebendo suficiente oxigênio artificial para poderem viver.

Gosto não se discute. Eu pelo menos considero um aquário uma comunidade de vida que se conserva num equilíbrio biológico.Qualquer outra coisa é um "estábulo" artificialmente conservado, um recipiente incontestavelmente higiênico,sem função própria, servindo só de meio de conservação de certos animais.

Muita experiência e sensibilidade permitem até certo ponto determinar o caráter do mundo vivo que deverá se desenvolver num aquário, escolhendo-se inteligentemente o solo, o local do recipiente, as condições de luz e de calor e, finalmente, os animais a criar. Isso é o máximo na arte do trato do aquário. Um grande mestre era o meu amigo Bernard Hellmann, falecido tragicamente.Num de seus aquários conseguiu realizar a cópia das condições naturais de vida do lago de Altaus: era uma bacia grande, muito alta, fria e um pouco distante da luz, cuja vegetação se compunha de plantas rastejantes (Potamogetonacae) verde-claras e transparentes, no fundo de pedregulhos crescia um musgo de fonte (Fontinales) e a frágil planta tipo candelabro (Chara). Os animais maiores consistiam em algumas pequenas trutas, Pfrille, uma espécie de carpa de até 13 cm, e um pequeno caranguejo de rio, isto é, nada além daquilo que na bacia correspondesse à quantidade de habitantes das águas naturais. Isso sempre tem que ser considerado com muito cuidado quando se deseja conservar animais aquáticos longamente e para reprodução. A maior parte dos peixes decorativos que encontramos nos aquários de nossos amigos facilitam essa tarefa por serem habitantes naturais de pequenos e não muito limpos charcos de terras longínquas. Essas pequenas poças dos trópicos, cujas águas são aquecidas igualmente o ano inteiro pelo sol forte, podem ser facilmente copiadas junto a qualquer janela que dê para o Sul e com a ajuda de um aquecedor elétrico; logo, fica fácil reproduzir suas condições se as compararmos com os tipos das águas naturais de nossas regiões. Por isso é que é muito mais fácil manter ou criar os peixes de nossos lagos ou rios do que os peixes dos trópicos. Acho que agora já será possível entender a razão pela qual aconselhei apanhar o primeiro animal com o conhecido coador no mais próximo charco. Já cuidei de inúmeros aquários, mas o mais comum, o mais barato e o conhecido como o aquário mais banal, o do charco, sempre teve a minha preferência, pois suas paredes conservam a comunidade de vida completa e natural. Pode-se ficar horas sentado defronte, perdido em pensamentos, da mesma forma que diante das chamas de uma lareira, ou do correr das águas de um riacho. E quanto se aprende! Se colocasse tudo numa balança, tudo o que me veio nessas horas de meditação diante do aquário, e numa outra o que aprendi dos livros, como esta seria mais leve!