quarta-feira, janeiro 24, 2007

IV - Sangue-frio

É impressionante com que fé cega são aceitas as verdades dos provérbios e ditados. Mesmo quando o que dizem é falso e errado: a raposa não é mais astuta que outros carnívoros e muito mais boba que o lobo ou o cachorro; a pomba não é nada dócil; sobre peixes em geral só se espalham falsidades: eles não têm nem tanto "sangue-frio" como se diz sobre pessoas enfadonhas, nem são tão saudáveis como expressa o ditado "como um peixe n'água".

Seguramente não há na natureza livre nenhum outro grupo animal que seja tão atormentado por doenças contagiosas como os peixes. Nunca vi nenhum pássaro, sáurio ou mamífero recém-aprisionado transmitir doenças contagiosas para meus animais; ao contrário, qualquer peixe tem que ficar num aquário em quarentena. Senão, aposto cem contra um, aparecem num curto espaço de tempo os temíveis pontinhos brancos nas barbatanas dos antigos habitantes do aquário, sinais da infecção com as parasitas Ichthyphtirius. E ainda, contrariando uma conhecida melodia, não se conhecem tão bem em nenhum outro animal a prodigalidade e sentido do beijo, como em algumas espécies de peixes. Conheço muitos animais e seu comportamento nas situações mais íntimas de suas vidas, no êxtase selvagem da luta e do amor – mas não conheço nenhum animal, fora o canário selvagem, que ultrapassasse no ardor e no temperamento por ocasião do acasalamento o macho gastrósteo, um peixe lutador siamês ou uma perca multicolor (Cichlidae). O amor não transforma tanto nenhum outro animal, nenhum se entusiasma, no verdadeiro sentido da palavra, com tal paixão como o gastrósteo ou o peixe lutador. Quem poderia retratar com palavras ou pintar as cores: aquele vermelho brilhante que faz os lados do gastrósteo macho se tornarem transparentes como vidro, o penetrante azul-esverdeado das costas, cujo colorido e intensidade só podem ser comparados aos tubos Geissler, ou finalmente o verde-esmeralda fulminante dos olhos? Segundo as regras da pintura, essas cores deveriam destoar-se horrivelmente, porém feitas pela mão do Grande Mestre oferecem uma sinfonia.

No peixe lutador esse rico colorido não é contínuo. O pequeno peixe cinza-pardo que está num canto do aquário com as barbatanas fechadas ainda não denuncia nada disso. Só quando um outro não menos vistoso que o primeiro dele se aproxima e ambos se olham, então brilha a pompa inacreditável, e isto quase tão rapidamente como se avermelha uma resistência de aquecimento quando ligada à eletricidade. As barbatanas se abrem em formas ornamentais, tão rapidamente, que se esperaria ouvir algum ruído, como quando se abre rapidamente um guarda-chuva.

E então segue uma dança de paixão ardente, uma dança que não é brinquedo, mas seriedade profunda, uma dança de ser ou não ser, de viver ou perecer. Pois logo ficará definido se levará a uma ronda de amor e ao acasalamento, ou se vai se desenvolver uma luta sangrenta. Os peixes lutadores não reconhecem o gênero do sexo de seu semelhante em se olhando, senão pelo modo como o parceiro reage, com movimentos instintivos, rigorosamente ritualizados e herdados, ao outro dançarino.

O encontro de dois peixes lutadores começa com a denominada "postura imponente", uma vangloriosa auto-exibição, na qual todos os possíveis pontos brilhantes e intensos raios das maravilhosas barbatanas são levados a um efeito máximo. Diante do esplendor de um macho, a fêmea arreia logo a bandeira, entende-se no verdadeiro sentido da palavra, isto é, fecha as barbatanas e, caso não deseje o acasalamento, foge imediatamente. Mas, caso concorde, se aproxima do macho de uma forma especialmente doce e tímida, com uma postura exatamente oposta à imponente. Então se desenvolve uma ronda de amor, que concorre com a leveza graciosa dos movimentos, por ser inferior no brilhantismo da dança de guerra de dois machos.

Quando porém dois machos se encontram, então ocorrem verdadeiras orgias de vanglórias recíprocas; estes são o máximo em beleza estética que um aquário pode oferecer. Cada movimento segue regras determinadas e tem um sentido "simbólico", semelhante ao dos gestos nas danças rituais dos siameses e indonésios. Há uma acentuada semelhança entre o estilo e a graça na paixão refreada dos homens e dos animais. De certo modo se nota que alguns movimentos trazem em si longo desenvolvimento histórico e devem essa sutileza em suas formas a rituais antigos. Esse ritual, porém, sem dúvida representa, nos homens, os resultados das tradições históricas de um povo, mas nos animais um desenvolvimento herdado, enraizado e inato de formas de movimento da espécie. A pesquisa das raízes da procedência de tais movimentos "ritualizados", da expressão e a comparação da semelhança de tais cerimônias é muito elucidativa. Sabemos mais sobre a história de tais movimentos do que da origem dos chamados "instintos". Bem, mas isso pertence a outras folhas.

Depois dessa excursão voltemos à dança de guerra dos machos. Ela se reveste exatamente do mesmo significado que o duelo de ultraje e exibição dos heróis homéricos ou dos camponeses dos Alpes que até hoje são motivo suficiente para deflagrar brigas nas tabernas. Começa-se por intimidar o inimigo, ao mesmo tempo que se procede a uma auto-incitação a fim de adquirir-se coragem para enfrentar o desafio.

A longa duração do prelúdio, seu caráter ritual, e principalmente pelo luxo da riqueza nas cores e desenvolvimento das barbatanas, que só servem para intimidar e não para uso na ação, tudo isso aos olhos de um principiante carece de uma seriedade ameaçadora. Especialmente sua beleza deixa os lutadores parecerem menos maldosos do que na realidade o são. Poderíamos pensar que essa coragem tenaz e mortal é quase como a beleza afeminada dos guerreiros malaios que, entretanto, lutam até a morte. Realmente, na maioria das vezes as lutas dos peixes lutadores resultam na morte de um deles. Quando a excitação chega ao ponto de se trocarem as primeiras punhaladas não passa muito tempo a surgirem longos rasgões nas barbatanas, que em alguns minutos ficam esfarrapadas. O ataque do peixe lutador, como na maioria dos peixes de combate, é realmente a punhalada e não a mordida. O peixe abre a mandíbula o suficiente para que seus dentes enrijeçam para a frente, posição em que se lança com toda a força musculosa de seu corpo sobre a parte lateral do inimigo. O golpe desse peixe lutador de alguns centímetros é tão forte e duro que quando ele erra o alvo e bate contra a parede do aquário, ouve-se um pancada claríssima.

A exibição pode durar de meia até uma hora; mas, começadas as hostilidades, leva só alguns minutos até que um dos combatentes, mortalmente ferido, cai no chão.

Totalmente diferente dessas lutas dos peixes lutadores siameses são as dos nossos gastrósteos europeus. Ao contrário do peixe lutador, o gastrósteo não só resplandece no período de acasalamento ao ver um inimigo ou uma dama, como também ao encontrar-se nas proximidades do local que escolhera para ninho.O princípio de sua luta é: "Minha casa é meu castelo". Se tirarmos um gastrósteo de seu ninho, ou o retirarmos de sua bacia natal, ele não pensará em lutar, senão ficará pequeno e feio. Seria impossível usar gastrósteos para exibição de lutas como fazem os siameses, há séculos com seus peixes lutadores. Somente depois de encontrar o lar é que o gastrósteo é capaz de se desenvolver fisicamente e entrar no cio; só é possível assistir uma luta séria entre gastrósteos mantendo-os em uma bacia grande onde dois machos constroem seus ninhos. O desejo de luta do gastrósteo varia a cada momento, estando em proporção contrária à distância do local do seu ninho. Junto ao ninho ele é um guerreiro selvagem, abalroado com uma coragem mortal até a mão humana. Mas, quanto mais se afasta do seu quartel-general, menos intenso fica seu desejo de atacar. Quando dois machos se encontram, pode-se prever seguramente como terminará a luta: foge aquele que se encontra mais distante da casa. Na proximidade imediata de seu ninho, o menor de todos bate no maior, a relativa força de luta de cada um se expressa na extensão do território que deseje manter livre dos rivais. É claro que o perdedor foge para casa; da mesma forma é compreensível que o vencedor persiga ferozmente o outro. Entrementes ele vai se distanciando, do seu quartel-general, e sua coragem vai diminuindo na mesma proporção, como vai aumentando a do fugitivo vencido. Ao chegar na proximidade de seu ninho, este há pouco ainda acovardado, ganha novas forças, vira de repente e avança com ferocidade contra o seu perseguidor. Então se desenvolve uma nova luta que termina seguramente com a vitória do antigo perdedor, e assim a caça continua no mesmo caminho.

Todo esse processo se repete algumas vezes, a perseguição recíproca varia entre os dois territórios como as batidas de um pêndulo, que vão diminuindo até terminar numa "fronteira" mais ou menos constante. Nas lutas tomam posição de ameaça, um frente ao outro, as cabeças para baixo e os rabos para cima. Ao mesmo tempo viram os lados largos na direção do inimigo ameaçando com uma espinha da barriga, fazendo movimentos peculiares, golpes para baixo, como se os animais quisessem pegar alimento do solo, mas que na verdade são movimentos “ritualizados” da ação de cavar seus ninhos. Podemos observar movimentos sempre quando os peixes já não têm coragem para agir com violência.

Diferentemente dos peixes lutadores, os gastrósteos não ameaçam antes do começo da briga, pelo contrário, logo começam com golpes e choques tão rápidos, que mal podem ser acompanhados pelo observador. A grande espinha da barriga que dá a impressão de tão perigosa, só desempenha papel secundário; mesmo assim essa luta "corpo a corpo" dos gastrósteos nos parece muito mais perigosa que a dança de guerra dos peixes lutadores; apesar de estes, depois dos primeiros golpes, deixarem profundos rasgos nas barbatanas, nos outros é impossível verificar a olho nu algum ferimento. Mesmo que seja possível ler no novo Brehm que "as espinhas são usadas com tanta violência que freqüentemente um dos lutadores mortalmente apunhalado cai ao chão", isto demonstra que o escritor nunca tentou perfurar um gastrósteo. Pois, mesmo com um escalpelo bem afiado, o gastrósteo escapa algumas vezes até que se consiga penetrar em sua pele dura até nas partes em que não há couraça. Coloque-se um gastrósteo morto sobre algo macio (que sempre será menos movediço que a água) pegue-se uma agulha de costura (que é cem vezes mais afiada que uma espinha de gastrósteo) e tentemos espetar o animal. Nós nos espantaremos. Naturalmente, num espaço muito pequeno é possível que um gastrósteo macho e forte com sua perseguição sem fim, ao rasgar as barbatanas e a pele externa do outro, leve à morte deste, mas algo parecido também ocorre com os coelhos e os pombos.

Estes peixes temperamentais também são diferentes no mar. Apesar disso, eles têm algo em comum. Em ambos é o macho e não a fêmea que se responsabiliza pela construção do ninho e pelo cuidado com a ninhada. E em ambos o futuro pai de família não pensa no amor antes de terminar por completo o berço dos filhotes. Aqui, porém, cessam as semelhanças e principiam os contrastes. O berço do gastrósteo fica debaixo do assoalho e o do peixe lutador debaixo do teto; isto é, um faz uma cova no solo da água e o outro, dir-se-ia, na superfície; um utiliza na construção fibras de vegetais e secreção dos rins; o outro, ar e saliva.

O castelo de ar dos peixes lutadores, como também de seus parentes próximos, consiste num amontoado de bolhas de ar coladas umas nas outras e cobertas com uma saliva resistente, duradoura e sobressaindo na superfície. Já durante a construção o macho reluz em suas esplendorosas cores que aumentam de intensidade assim que uma fêmea se aproxima. Como um raio, o macho se atira na direção dela, e pára rutilante. Caso a dama esteja disposta a seguir o convite da natureza, demonstra isso tomando uma coloração característica e com listras claras e irregulares. Com as barbatanas bem fechadas, devagar, ela vai nadando em direção ao macho, o qual, com as barbatanas quase rasgando de tão abertas, oferece um dos lados largo e deslumbrante para sua cortejada. Neste momento, com movimentos graciosos e ondulantes sai nadando em direção do ninho. Mesmo quando se vê pela primeira vez, a característica de convite desse gesto é logo reconhecida. Do mesmo modo se compreende logo a essência do "ritual" nos movimentos do nado: tudo que pode alcançar um efeito ótico é exagerado pela mímica, como a ondulação do corpo ou o abanar do rabo. Pelo contrário, tudo que os faz terem um efeito mecânico é diminuído, pois o movimento diz: "Eu vou sair nadando, corre para me acompanhar"; porém na mesma hora o peixe, sem nadar longe demais, logo retoma até a fêmea que hesitante e timidamente o acompanha.

Assim, a femeazinha é atraída até debaixo do ninho de espuma. Então, segue uma maravilhosa roda de amor que recebeu nos Alpes, dos amigos de peixes decorativos, a denominação de sua dança folclórica, Schuhplattler (Batedor de botas) sem dúvida uma falta de gosto, pois a roda tem a graciosidade e leveza de um minueto, que no todo faz lembrar a dança de transe das dançarinas dos templos da Tailândia. Seguindo regras seculares, nesta dança de amor o homem sempre fica virado de lado para sua dama, a qual por sua vez deve estar sempre em ângulo reto a ele. Por sua vez em momento algum o senhor deverá ver as costas dela, pois se isso acontecer ele fica zangado e grosseiro. Nesses peixes, como em tantos outros, ficar de lado significa disposição masculina para luta, ocasionando uma total mudança de humor: a maior paixão se transforma em ira selvagem.

Como agora o macho não quer sair do ninho, fica girando ao redor da fêmea, que acompanha todos os seus movimentos de frente, e a roda vai-se fechando sempre em círculos menores bem no centro do ninho de espuma.

As cores vão ficando sempre mais brilhantes, os movimentos mais excitados, os círculos se fechando até que os corpos se toquem. Então, o macho enlaça com o corpo a fêmea virando-a de costas e tremendo, realizam o grande ato da procriação: ambos expelem ao mesmo tempo os ovos e o sêmen.

Depois do acasalamento a fêmea, aturdida, continua de costas por alguns segundos, mas o macho logo a seguir tem algo importante a fazer.

Os pequenos ovos transparentes são muito mais pesados que a água, e logo afundam. É por isso que a posição do acasalamento foi tão sabiamente preparada, que os ovos ao afundarem passam junto da cabeça abaixada do macho, que logo toma conta deles. Com cuidado, ele se solta de seu abarcamento, desce atrás dos ovos e os recolhe, um por um em sua boca, trazendo-os logo até o ninho de espuma, escondendo-os entre as bolhas de ar. É extremamente necessário que ele se apresse, pois caso demore muito tempo não só não encontraria mais no lodo as bolinhas transparentes, como a fêmea também acordaria e nadaria para recolher os ovos. Bem, você com certeza achaque ela gostaria de ajudar o marido a prontamente colocar os ovos no ninho. Pois sim, você esperaria em vão, porque esses ovos estariam perdidos, engolidos e comidos para sempre.

O macho sabe bem porque se apressa tanto e porque, depois de dez a vinte acasalamentos, tendo sua reserva de ovos esgotada, não suporta a presença da fêmea perto do ninho.

Bem diferente é o cerimonial das cavalheirescas percas multicolores, ou Cichliden Neste caso ambos os sexos cuidam dos descendentes, que em bandos fechados acompanham os pais como. Os pintinhos a galinha. Pela primeira vez na ordem ascendente dos animais vivos, podemos verificar no comportamento da perca multicolor algo que os homens consideram benemérito e moralista: o macho e a fêmea permanecem unidos em estreita comunhão, mesmo depois de realizarem com sucesso a obra da procriação, além do período necessário para cuidar da ninhada. Em geral já se considera um "casamento" quando ambos os sexos cuidam juntos da criação da ninhada, mesmo não existindo um laço "pessoal" em relação ao esposo. Nos Cichliden, porém, isso existe.

Para verificar objetivamente se um animal reconhece seu consorte como um indivíduo, é necessário substituí-lo na experiência por um outro animal do mesmo gênero que se encontre na mesma fase no ciclo de reprodução. Por exemplo, substitui-se a fêmea num casal de pássaros que esteja chocando por uma outra que já esteja na fase psicológica da alimentação dos filhotes, é claro que seu procedimento instintivo não combina com o do macho. Necessariamente, logo começam desacordos nos quais é difícil dizer se o pássaro macho realmente nota que a fêmea presente não é a esposa anterior, ou se ele só leva a mal o seu "comportamento falso". Naturalmente para mim era de maior interesse saber como seria no caso dos Cichliden, os únicos peixes que formam um casamento, o comportamento nesse sentido. Para fazer a experiência eram necessários dois casais da mesma espécie que se encontrassem na mesma fase de procriação. Essa condição só foi preenchida em 1941 por dois casais de maravilhosos Herichthys cyanoguttatus sul-americanos, denominados "Peixe-herói" com pontinhos azuis. Essa denominação é deveras acertada: sobre um fundo aveludado preto formam-se pontos como gotas de um azul-turquesa brilhante, constituindo um mosaico entrelaçado de uma beleza impressionante. Nesses peixes o casal do cio desenvolve uma coragem de herói diante do maior inimigo, o que justifica sem dúvida o nome. Meus cinco jovens peixes dessa espécie não estavam ainda nem coloridos nem com coragem heróica. Depois de algumas semanas de alimentação esmerada e demonstrando bom crescimento num aquário grande e ensolarado, certo dia em um dos peixes maiores apareceram os primeiros pontos azuis e ao mesmo tempo a coragem. O peixe apossou-se do canto esquerdo dianteiro do aquário, começando a cavar algumas covas profundas, preparando uma pedra grande e lisa, isto é, limpando-a das algas e outras crostas (antes havíamos colocado pedras especiais no canto do aquário). Os outros quatro peixes permaneciam amedrontados em grupo no canto direito ou na parte de trás da área. Mas logo na manhã seguinte, um outro menor já tinha colocado seu traje de esplendor; o peitilho, de um preto aveludado sem manchas azuis, demonstrava que o animal era uma fêmea. O macho logo principiou o cerimonial, a fim de trazer sua escolhida para casa, tal como ocorre com os peixes lutadores e os gastrósteos.

O casal já se encontrava sobre a pedra mencionada para a desova e as covas do ninho e ferozmente defendiam a região. Os três outros peixes restantes não tinham mais muito do que rir, e conforme já diz o nome sobre a coragem heróica desses animais, após alguns dias o segundo maior deles amadureceu em sua masculinidade tomando posse da parte dianteira direita do canto do aquário.

Assim, ambos os machos encontravam-se frente a frente, como dois cavalheiros inimigos em suas fortalezas. O limite encontrava-se mais próximo da área do segundo a entrar mais tarde no cio, o que é bem compreensível considerando-se que ao sair do seu canto sempre tinha dois inimigos no seu encalço, mesmo sendo o ataque da fêmea bem menos feroz que o do macho. O macho solitário, denominemo-lo simplesmente de número dois, sempre saía de sua fortaleza nadando em águas livres, tentando atrair a fêmea do número um a fim dela segui-lo até seu ninho. Essas tentativas, porém, não tinham resultados. Apenas levava a fêmea número um a desfechar violentos golpes em suas costas, quando ele tentava atraí-la. Essa situação perdurou sem modificações, durante alguns dias.

Então pareceu que ia acontecer um desfecho feliz com um duplo casamento, porque uma segunda fêmea havia colocado o vestido de noiva. Mas não aconteceu nada disso. Nem o macho número dois se preocupava com essa nova fêmea no cio, como também ela estava desinteressada dele.

Mais e mais ela tentava oferecer-se para o macho número um. Toda vez que o macho número um nadava em direção de seu ninho, a fêmea número dois o acompanhava como se fosse levada ao ninho. Ela "se sentia atraída em direção ao ninho" quando esse macho se movimentava em direção do ninho. A esposa deste parecia estar totalmente ciente da situação, e assim que a perturbadora se aproximava ela a atacava com a maior violência, o que o macho só fazia muito por alto. O macho dois e a fêmea dois não tomavam conhecimento um do outro, só tinham olhos para o casal amante, que por sua vez não s considerava de forma alguma.

Essa situação teria perdurado por um longo período se eu não tivesse interferido, colocando o casal número dois em um outro aquário idêntico. Separados de seus objetos adorados inutilmente, brevemente se encontraram, transformando-se em um par. Depois de alguns dias ambos os casais desovaram na mesma hora. Bem, agora eu tinha o que desejava, isto é, dois pares de Cichliden na mesma fase do ciclo de reprodução. Como a criação desses peixes, já naquela época raros, me prendeu mais, para realizar minha experiência esperei que os filhotes de ambos os casais estivessem suficientemente crescidos, a fim de, em caso de necessidade, ou seja, numa total incompatibilidade matrimonial dos pais, pudessem sobreviver sozinhos.

Então fiz as trocas das fêmeas. O resultado foi discrepante e não serviu como resposta para a pergunta, sobre se o peixe conhece sua fêmea pessoalmente. A interpretação que dei para o que se segue pode parecer ousada para alguns e necessitaria ser confirmada por experiências subseqüentes. O macho número dois aceitou logo a fêmea número um. Não me pareceu que ele não tivesse notado nenhuma diferença, pelo contrário, seus movimentos na troca de sentinela e em cada encontro com a fêmea me pareciam acrescidos de fogo e intensidade. A fêmea por seu lado aceitava as cerimônias de seu macho e sem atrito se enquadrava em seu papel nos cuidados com a ninhada. Isso não me demonstrava muita coisa porque a fêmea "Peixe-herói", como uma galinha-choca caprichosa, se concentra intensamente no bando dos pequenos filhotes, tendo no macho só o interesse como defensor da famí1ia e de tempo no revezamento da função.

Totalmente diferente eram os acontecimentos no outro aquário, onde eu tinha colocado a fêmea número dois junto ao macho número um e dos filhotes deste. Aqui também a fêmea só tinha olhos para os filhotes, nadando logo na direção do bando; como se encontrava irritada pela mudança, colocou-se sobre os filhotes e, tal qual uma galinha assustada, começou a recolhê-los ao seu redor. A mesma coisa havia feito a fêmea número um no outro aquário. Mas enquanto o macho número dois aceitava com cerimônia amigável e brilhante a troca com a fêmea colocada ali, o macho número um permanecia desconfiado junto do bando de filhotes e, não se considerando substituído, atacou a fêmea desprevenida com um golpe nas costas desprotegidas. Logo caíram algumas escamas prateadas até o chão como flocos. Intervi rapidamente para salvar a femeazinha , que em alguns minutos teria sido esfolada até a morte.

O que havia acontecido? Bem, o peixe que ganhara a fêmea mais bonita, pela qual já se interessara anteriormente, estava satisfeito com a troca. O outro, do qual eu havia retirado a mulher bonita e em troca lhe colocara a dama que ele já havia recusado, estava com toda razão furioso. O impressionante era que ele a atacou com muito maior ferocidade que antes, quando ainda estava na presença da verdadeira mulher. Penso que o macho número dois, que na troca levou a "melhor", notou a diferença, mas não posso jurar.

Mais interessante ainda para o observador e ainda mais excitante que os casos de amor é o cuidado com os filhotes desses peixes notáveis. "O serviço" consciencioso junto ao ninho, como o abanar da água do gastrósteo enquanto o berço ainda contém ovos ou filhotes, a exatidão militar na substituição de um parceiro pelo outro, e mais tarde, quando os filhotes já conseguem nadar, o cuidado em guiar e acompanhar o bando, essas são imagens que não se esquecem. O mais belo é quando os filhotes, já nadadores, são levados à noite para dormir. Isso mesmo! Até uma idade de várias semanas, assim que escurece, os filhotes são levados de volta às covas do ninho onde se criaram. A mãe fica sobre o ninho e com movimentos precisos atrai os filhotes até lá. No Hemichromis bimaculatus (Peixe-jóia) a barbatana das costas da fêmea tem um papel muito especial nesse caso com seu colorido vermelho e os pontinhos azuis brilhantes. A barbatana
é abanada rapidamente para. cima e para baixo, fazendo as jóias azuis brilharem como o reflexo de um espelho. A esse sinal os filhotes retomam nadando e se reúnem debaixo da mãe na cova. Enquanto isso o pai corre por todo o aquário procurando algum retardatário, o qual ele não fica atraindo por mais tempo: simplesmente o inala na cavidade bucal, nada até onde estão os outros e o sopra para dentro do ninho.

O filhote tratado desse modo afunda logo no chão e fica deitado.

Através de uma disposição de reflexo, a bexiga natatória dos filhotes de Cichliden adormecidos se contrai tanto que eles ficam muito mais pesados que a água, permanecendo deitados na cova como pedrinhas, da mesma forma como quando eram recém-nascidos e sua bexiga natatória não estava repleta de água. Essa mesma reação de "ficar pesado" ocorre se um dos pais coloca um filhote na boca. Sem esse mecanismo de reflexo seria impossível ao pai recolher à noitinha os filhotes.

Exatamente ao transportar, certa vez, para casa um filhote desgarrado é que vi um macho (peixe-jóia) fazer uma proeza que me impressionou. Ao final de uma tarde cheguei ao Instituto. Já estava escurecendo. Mesmo assim eu ainda queria alimentar alguns peixes que ainda não haviam recebido nada, entre eles um "peixe-jóia" que levava um filhote.Ao chegar junto ao aquário quase todos os filhotes já estavam na cova do ninho sobre a qual se encontrava a mãe em fiel sentinela. Ela já não veio comer quando joguei os pedaços de minhoca no aquário. O pai porém, que nervoso procurava por todo o aquário pelos filhotes desgarrados, deixou-se distrair por um bonito pedaço posterior de uma minhoca (por motivos ainda desconhecidos essa é a parte mais apreciada pelos comedores de minhoca). Ele veio nadando e pegou a minhoca que não conseguiu engolir de uma vez por ser grande demais. Exatamente quando ainda mastigava com a boca cheia viu um filhote sozinho nadando pelo aquário. Como se fosse eletrificado perseguiu o filhote e pegou-o em sua boca já cheia. Isso era palpitante. O peixe estava com duas coisas na boca, sendo que uma deveria ir ao estômago e a outra para a cova do ninho. O que iria acontecer? Eu tenho que confessar que naquele momento não teria dado nenhum centavo pela vida daquele peixinho.

Mas, é fantástico o que realmente aconteceu. O peixe ficou imóvel com as bochechas cheias, mas sem mastigar. Bem, se algum dia vi um peixe refletir, esse foi o momento. Se considerarmos como é fantástico que um peixe pode chegar a uma verdadeira situação de conflito e que no caso o animal se comporta exatamente como o homem, isto é, bloqueia em todos os sentidos sem poder ir para frente ou para trás.

Muitos segundos, como que cercado o pai Hemichromis continuava parado, mas podia-se ver claramente como trabalhava por dentro. Aí então ele resolveu o conflito da seguinte forma, pela qual devemos sentir admiração. Ele cuspiu todo o conteúdo da boca, a minhoca e o filhote caíram no fundo. Então o "peixe-jóia" dirigiu-se decidido em direção à minhoca, devorou-a sem pressa, mas mantendo um olho atento em direção do filhote "obediente" que continuava no chão. Ao terminar inalou-o, levando-o para casa até a mãe.

Alguns estudantes que assistiam a tudo começaram a aplaudir a um só tempo.