quarta-feira, fevereiro 07, 2007

VI - O anel do Rei Salomão

Assim está escrito: o rei Salomão falava com as bestas, os pássaros, os peixes e as minhocas. Isso eu também consigo, apesar de não com tantos animais como o velho rei fazia. Admito mesmo ser-lhe nisso inferior. Mas eu consigo falar com algumas espécies que conheço bem, não precisando de nenhum anel mágico. Nesse sentido, sou superior ao velho rei, que sem o seu anel não teria compreendido a língua nem de seus animais mais íntimos. E quando já não possuía mais o anel, seu coração endureceu contra o mundo animal. Dizem que certa vez, irado, Salomão lançou fora o seu anel mágico depois que um rouxinol lhe revelou que uma de suas novecentas e noventa e nove esposas amava um homem mais jovem. Pelo menos é assim que nos conta J. V. Widmann na sua encantadora lenda “O santo e seus animais”.

Tudo isso pode ter sido muito sábio ou muito errado da parte de Salomão; da minha parte acho muito antiesportivo usar anéis mágicos na relação com os animais.

Sem mágica alguma, esses seres vivos nos recontam as histórias mais belas, pois são verdadeiras. E a beleza da natureza é sempre ainda mais bela do que tudo que os nossos poetas, os únicos verdadeiros mágicos, jamais poderiam criar.

Não é nada demais entender o “vocabulário” de alguns animais. Também podemos falar aos animais, claro que dentro do limite das possibilidades de nossos meios de expressão e na medida que os animais estão dispostos a entrar em contato conosco. No caso, porém, temos de cuidar de não nos confundirmos, Como certa vez ocorreu ao meu amigo Alfred Seitz. Um dia, num princípio de verão, filmávamos os nossos gansos cinzentos nas várzeas do Danúbio. Devagar, íamos passando pela paisagem virgem de água, salgueiros e caniços, devagar, muito devagar, porque nossos passos normais correspondiam à velocidade máxima dos treze novos Anas platyrhynchos, patos selvagens nativos da nossa região, e dos nove pequenos gansinhos cinzentos que nos seguiam em longa fila. Finalmente alcançamos um lugar pitoresco que servia para as filmagens de Alfred. Ele foi logo se dedicando ao seu trabalho e eu me preparava para a orientação científica do empreendimento. No momento isso se resumia em ficar tomando sol sobre o gramado duma pequena ilhota. Alfred, com a água chegando até a cintura, estava de pé e com uma paciência de animal espreitava com o olho e a câmara.

O sol queimava, as libélulas zumbiam e os sapos coaxavam. Aos poucos eu fui adormecendo e só ouvia, como se viesse de muito longe, a voz de Alfred brigando com os patos que sempre nadavam na direção da imagem na hora errada. Enquanto eu ainda lutava dificilmente entre a decisão de me levantar para atrair os patinhos de lá, ouvi Alfred irritado, de repente dizer: “Ranggrangang, Rang… ah, quero dizer, Qué, qué, qué…”. Foi aí que ele se confundiu, falando aos patos na língua dos gansos! Meu amigo Alfred pronunciara os sons com o acento perfeito de ganso, ou melhor, de pato. Por isso o seu “quero dizer”, que intercalara, ressoou de uma forma tão cômica.

Uma língua, no verdadeiro sentido da palavra, os animais não possuem. Qualquer indivíduo que pertença a uma espécie de animal superior traz inato, dentro de si, um completo código de sinais e movimentos de expressão, principalmente se viver em sociedade, como a gralha ou o ganso cinzento. Também traz inata a capacidade de emitir tais sinais, como também de “entendê-los” corretamente, isto é, responder de forma adequada para a preservação da espécie. Quando se torna claro com esses conhecimentos, sustentados por muitas observações e experiências, então desaparece a grande parte da semelhança que, ainda que observado de forma superficial, existe entre os “meios de comunicação” dos animais e da língua humana. Essa semelhança diminui ainda mais pelo fato de o animal não ter uma “finalidade” consciente de influenciar um semelhante ao emitir seus sons ou movimentos de expressão. Mesmo gansos cinzentos, gralhas ou patos selvagens criados e mantidos isoladamente, emitem por si mesmos todos esses sinais no momento em que são tomados por tal disposição. Esse procedimento então nos parece obrigatoriamente muito “mecânico”, isto é, muito pouco parecido com o humano.

No comportamento do homem também temos sinais de mímica que transmitem forçosamente uma disposição: você sentirá vontade de bocejar se alguém ficar bocejando diante de você, só para dar o exemplo mais comum. É claro que esses sinais, como, por exemplo, se evidencia na disposição de bocejar do ser humano, são estímulos relativamente fortes e de fácil assimilação e cujo efeito de origem não me parece incompreensíve1. Porém em geral não são necessários sinais tão rudes e evidentes para transmitir uma disposição. Pelo contrário: tal proccsso de transmissão se caracteriza por responder a movimentos de expressão muito finos, discretos e que muitas vezes escapam a uma observação consciente.

Esse misterioso aparelho receptor e transmissor, que é o mediador do transporte inconsciente desses sentimentos e' afeições, é antiqüíssimo, muito mais velho do que a humanidade. Em nós ele regrediu na proporção em que desenvolvíamos nossas palavras. O homem não necessita do menor movimento para expressar sua intenção, ele sabe dizê-la. Gralhas e cachorros, porém, são forçados a “ler nos olhos um do outro” o que o outro fará no momento seguinte. É por isso que esse aparelho receptor e transmissor nos animais superiores e que vivem em sociedade é muito mais desenvolvido, e especializado que em nós, homens. Todos esses sons de expressão nos animais, como o “Kiu” e o “Kiá” das gralhas, ou, conforme sua disposição, o som mono ou polissilábico do ganso cinzento, não são comparáveis às nossas palavras. Isso só seria possível com as exteriorizações de nossas Vontades,como o bocejar, o franzir da testa, um sorriso ou algo semelhante, enfim, o que expressamos inconscientemente e já está inato e é compreendido do mesmo modo. Nas diversas “línguas” de animais as “palavras” são interjeições.

É possível que o ser humano também disponha de inúmeras variedades de mímica inconsciente, mas nenhum Josef Kainz ou Emil Jannings seria capaz de se fazer entender claramente só com a mímica de que gostaria de andar a pé ou preferiria voar como o ganso cinzento é capaz de fazer, ou como a gralha, que com uma leve insinuação consegue indicar se quer voltar para casa ou voar para mais longe. Assim, o aparelho transmissor dos animais é consideravelmente mais potente que o do homem. O mesmo pode ser dito sobre o receptor das transferências de disposição, o qual não só consegue distinguir um enorme número de sinais como também responde à transmissão de muito menor energia do que o nosso.

É impressionante como os animais entendem e aplicam certos sinais mímicos, completamente imperceptíveis para os homens. Se uma gralha que se encontra em um bando à procura de alimento, levanta vôo para pousar na macieira mais próxima e limpar as penas, nenhuma outra ave toma conhecimento disso. Porém, se ela levantar vôo para afastar-se a uma distância maior, dependendo da “autoridade” de que desfruta no bando, será acompanhada pelo consorte ou de um grupo de gralhas, ainda que não tenha emitido nenhum “Kiá”.

Seja como for, um profundo conhecedor de gralhas pode reconhecer sinais muito sutis e entendê-los, contudo, nem sempre isto é possível. Já o “receptor” dos cães ultrapassa nossas capacidades análogas. Qualquer conhecedor de cachorros sabe com que inacreditável segurança um fiel cão olha o dono se este sai do quarto para qualquer finalidade ou se sai para levá-lo ao tão esperado passeio. Alguns cachorros, porém, conseguem fazer coisas incríveis nesse sentido. Minha cadela pastor-alemã Tito, a tetravó do meu cachorro atual, sabia exatamente por vias “telepáticas” quem e quando alguém me irritava. Era impossível evitar que ela, com suavidade, mas com segurança absoluta, o mordesse nas nádegas. Especial perigo corriam os senhores de mais idade e autoritários que numa discussão tomavam a conhecida atitude do “de qualquer maneira você é jovem demais”: caso o estranho se expressasse assim, logo teria de segurar assustado o lugar onde Tito o castigara. Para mim ficou totalmente obscuro o fato de isso funcionar com absoluta segurança mesmo se a cadela estivesse debaixo da mesa, isto é, sem ver o rosto ou a expressão do homem; como é que ela sabia quem era o adversário da minha opinião?

É claro que essa sutil compreensão de cada disposição do dono não é “telepatia”. Alguns animais possuem essa capacidade surpreendente de captar movimentos íntimos que escapam aos olhos humanos. E um cachorro que cuida com uma concentração máxima em servir o dono, e ao pé da letra, “lê em seus lábios seus desejos”, consegue coisas incríveis. Nesse sentido os cavalos também são famosos. Talvez seja por isso oportuno relatar algumas peripécias que trouxeram certa fama a vários animais. Alguns talvez se lembrem do “João inteligente”; também existiram cavalos pensadores que resolviam raízes cúbicas e não devemos nos esquecer do cachorro milagroso Rolf, um terrier que chegou a ditar seu testamento à dona.

Todos esses animais que calculam, discursam e pensam, “falam” através de sinais como batidas ou sons latidos codificados conforme uma espécie de alfabeto morse. Ao primeiro olhar essas apresentações são espantosas. Você será convidado a tirar a prova por si mesmo. Você será colocado defronte ao cavalo, bassê ou qualquer outro animal. Então você pergunta quanto são dois mais dois; o bassê o olhará firmemente e latirá quatro vezes. Ainda mais surpreendente nos parece o cavalo que nem nos parece considerar ao dar suas batidas; cavalos conseguem enxergar o que não fixam, pela chamada visão indireta, com enorme precisão, até os menores movimentos. É você mesmo que, através de sinais mínimos e involuntários, fornece o resultado certo. Se, porém, você não conhece a solução do problema, o pobre animal continuará a latir ou a dar batidas, esperando em vão o sinal que lhe diz que já pode parar. Mas muito poucos homens são capazes, através de um autocontrole e auto-observação, de evitar que transmitam esses sinais inconscientes e indesejáveis.

Certa vez um colega meu provou com um bassê que se tomara muito conhecido e pertencia a uma senhora solteirona que o homem é quem encontra a solução e a transmite ao animal pensante. O método era pérfido: na parte dianteira de um quadrinho, constituída de várias camadas de papel transparente, estava escrito em caracteres fortes números de uma adição simples; por trás, porém via-se transparecer uma outra pela luz que a atravessava. Quando a dama apresentava esse quadrinho para seu cão, ele só latia respondendo as soluções das questões vistas por sua dona e não as que ele teria que ter lido. No final, meu amigo apresentou ao bassê um papel que estava impregnado pelo cheiro de uma fêmea no cio. Excitado, o bassê farejava, gania e abanava o rabo. Ele sabia exatamente o que cheirava! Mas sua dona não. Então quando ela perguntou ao seu cachorro que cheiro tinha o papel, esse pelo morse respondera logo: “de queijo”!

Essa enorme sensibilidade de alguns animais de captar os mínimos movimentos de expressão, como a capacidade descrita do cachorro de notar sentimentos amigáveis ou estranhos que seu dono sinta em relação a outro ser humano, é naturalmente muito impressionante. É por isso que um observador ingênuo e que humaniza os animais chega a pensar que um ser que consegue adivinhar pensamentos tão íntimos e secretos deveria entender cada palavra que seu amado dono lhe falar. É que esquecemos que essa capacidade de entender movimentos expressivos desses animais sociais está tão desenvolvida exatamente porque eles não conseguem falar.

Nenhum animal fala algo com o propósito consciente de levar o semelhante a um comportamento definido. Todos os movimentos de expressão e sons transmitidos para o “entendimento” dos animais são expressos pela “emissora” como puras interjeições.

Quando seu cachorro o empurra com o focinho, choraminga, corre e arranha a porta, ou coloca as patas em cima do buraco de uma bica e olha em redor interrogando, ele faz algo que se assemelha muito mais à língua humana do que tudo que uma gralha ou um ganso cinzento jamais consegue “dizer”, mesmo possuindo sons tão compreensíveis, diferenciados e correspondentes à finalidade. O cachorro quer que você abra a porta ou a torneira, o que faz é consciente, uma influência com finalidade sobre o amigo humano; a gralha ou o ganso cinzento, porém, expressa inconscientemente sua disposição interior emitindo o som de Kiá e de Kiu, o sinal de atenção “fujam”; ela não consegue refrear o impulso e as diz da mesma forma, mesmo estando só.

Além disso, o que o cachorro faz é inteligente e estudado, mas o que as aves dizem é totalmente inato e herdado. Cada cachorro tem um outro método de se fazer entender pelo amo, e esse mesmo cachorro, conforme a situação do momento, usará de outros meios para alcançar sua meta. Minha cadela Stasi comera algo, certa vez, que lhe fez mal e por isso durante a noite ela sentiu necessidade de “sair do quarto”. Na época eu estava exausto e tinha um sono muito pesado; foi por isso que ela não conseguiu despertar-me com os sinais costumeiros e com os quais costumava expressar sua necessidade. Acho que ao empurrar-me com o focinho, choramingando, fez que eu me enrolasse mais ainda entre meus lençóis e travesseiros. Então, decidida, ela pulou em cima da minha cama e com as patas dianteiras me fez rolar do leito.

Não existe nas aves a capacidade de mudança nos movimentos de expressão em casos de adaptação a uma finalidade perseguida no momento.

É conhecido que papagaios e muitos corvídeos sabem “falar”, ou seja, imitar palavras humanas; às vezes pode ocorrer uma relação de idéias entre certas vivências e os sons. Essa imitação não é outra coisa que a conhecida “fazer troça” que encontramos em muitos pássaros cantores; o nosso nativo Hippolais icterina, o Lanius collurio, o pisco de peito azul e o estorninho são mestres nisso. Esses sons de troça que não são inatos, essas aves só emitem no “canto”, sem relação nenhuma com o significado de cada vocábulo. O mesmo ocorre com estorninhos, pegas e gralhas que conseguem se desenvolver bastante na imitação de palavras humanas.

Algo diferente ocorre, porém, no “falar” dos corvos maiores e principalmente nos papagaios grandes. No seu falar também encontramos algo involuntário e jocoso que se assemelha aos dos pássaros que espiritualmente lhe são inferiores, porém algumas expressões de corvos e papagaios se tomam estranhamente independentes: é evidente que existe uma certa relação quase (quase!) certa de idéias.

Muitos papagaios cinzentos e alguns do Amazonas dizem “Bom dia” só de manhã, e isto só uma vez e, portanto, adequadamente. Otto Koehler tinha um velho papagaio cinzento que se depenava totalmente e por isso vivia pelado; atendia pelo nome de “Abutre”. Não tinha nada de bonito, mas falar o tomava simpático. Dizia “Bom dia” e “Boa noite” com o sentido certo e se uma visita se levantasse para despedir-se, dizia com a voz grave e bonachona de um bebedor de cerveja: “Bem, até à vista.” Note-se bem, só quando alguém se levantava para se despedir realmente. Como cachorros que pensam, ele também estava preparado para os sinais transmitidos cientemente e que eram “para valer”; nunca conseguimos descobrir, porém, que sinais eram. Nunca conseguimos fazê-lo pronunciar a forma através de uma despedida fingida. Mesmo que a pessoa se retirasse e despedisse da forma mais discreta, na hora certa e como uma troça ouvia-se: “Bem, até à vista”.

O conhecido ornitólogo de Berlim, Coronel von Lukanus, teve também um papagaio cinzento que se tomara famoso pela força da memória. Junto de outras aves, Lukanus mantinha também um Upupa epops manso, que se chamava Hopfchen; o papagaio, que sabia falar muito bem, logo aprendera essa palavra. Essas aves de rapina não conseguem viver muito tempo em cativeiro, mas os papagaios sim. Depois de algum tempo Hopfchen tomou o rumo de tudo que é terrestre e o papagaio parecia ter esquecido seu nome; em todo caso nunca mais o repetiu. Conforme foi dito e escrito, depois de nove anos o Coronel Lukanus ganhou um novo Upupa epops e o papagaio ap vê-lo pela primeira vez, exclamou repetidamente: “Hopfchen... Hopfchen...

Essas aves são tão tenazes em conservar na memória o que aprenderam quanto lentas em aprender coisas novas. Qualquer um que quiser fazer um estorninho ou um papagaio aprender uma palavra nova sabe com que paciência deverá armar-se, e quantas vezes, incansavelmente, terá que repetir-lhe a palavra. Apesar disso, às vezes tais aves conseguem repetir uma palavra que ouviram casualmente uma só vez. Isso parece ser somente possível em “situações excepcionais” de máxima excitação; pessoalmente, só conheço duas observações garantidas.

Meu irmão teve durante anos um encantador papagaio manso, porém agitado e excepcionalmente dotado no falar, que se chamava Papagallo. Durante o período em que Papagallo viveu conosco em Altenberg, ele voava em liberdade como todas as outras aves. Um papagaio falante que voa de árvore em árvore emitindo palavras humanas é muito mais cômico do que um que fica sentado na gaiola fazendo o mesmo. Era irresistível ver Papagallo voando pela redondeza a gritar alto “onde está o senhor Doutor?”, às vezes realmente à procura do dono.

Ainda mais cômico, mas principalmente surpreendente nessa ave era o seguinte: Papagallo não tinha medo de nada e de ninguém além do limpador de chaminé.

Em geral, as aves se assustam facilmente com coisas que estão em cima, o que tem certa relação com o temor inato contra as aves de rapina que descem. Portanto, para elas, tudo que sobressai do céu transmite a sensação da “ave de rapina”. Quando a silhueta do homem preto, de uma escuridão assustadora e diferente dos outros homens, em pé sobre a chaminé, se desenhava contra o céu, Papagallo era tomado pelo pânico e, gritando alto, voava para muito longe a ponto de temermos por sua volta. Meses mais tarde, quando o limpador de chaminé voltou novamente, Papagallo encontrava-se pousado sobre o cata-vento e se aborrecia com as gralhas que queriam fazer o mesmo. De repente vi que ele foi ficando menor e temeroso espreitando para baixo, então levantou vôo gritando em tons agudos: “O limpador de chaminé está chegando, o limpador de chaminé está chegando.” Dali a um instante o homem de preto entrou pelo portão adentro.

Era pena, mas eu não conseguira mais averiguar claramente quantas vezes Papagallo vira o limpador de chaminé antes, e quantas vezes ouvira essa exclamação da nossa cozinheira anunciando sua chegada. Era sem dúvida a voz dessa dama que soava de suas palavras. Seguramente não pode ter sido mais do que duas a três vezes, e, em todo caso, uma só vez com um intervalo de meses.

O segundo caso que conheço, de uma ave “falante” que repetira depois de ouvir uma vez ou poucas vezes uma frase inteira era o de uma gralha cinzenta. O animal chamava-se Hansl e podia concorrer com o papagaio mais talentoso na parte do falar. Hansl havia sido criada por um ferroviário num lugarejo vizinho chamado St. Andrae-Woerden em total liberdade e se tornara uma ave vistosa e saudável, o que comprovava a capacidade de tratador de seu pai adotivo; ao contrário da opinião geral, gralhas não são nada fáceis de criar, e no trato que comumente recebem desenvolvem-se em aleijões como o Hans-Huckebein que Wilhelm Busch retrata tão sem compaixão. Certo dia, garotos da aldeia me trouxeram uma gralha cinzenta cujas asas e cauda estavam cortadas até o cotó que mal consegui reconhecer o belo Hansl. Comprei a ave como compro em princípio todos os pobres animais que me são trazidos pelos garotos da aldeia, parte por compaixão e parte talvez para encontrar algo verdadeiramente raro entre esses desgarrados. Então telefonei para o dono de Hansl, que confirmou que o pássaro sumira há alguns dias, mas que o tomasse sob meus cuidados até a próxima muda. Coloquei então a gralha no viveiro dos faisões e dei-lhe fortificantes para que, na muda já próxima, ganhasse penas e asas fortes e boas. Já nessa época em que o animal era um prisioneiro forçado, descobri que Hansl era um artista no falar. Quantas coisas eu ouvia! Principalmente, tudo que uma gralha mansa pousada numa árvore, junto da rua principal da aldeia, ouve dos garotos. Com um acento puro do sul da Áustria, Hansl declamava:

“Ei, escuta, venha cá, ora veja, ali está ele; ei, escuta, upa cavalinho, ora veja, ali está ele.” E assim por diante. Com alegria vi o gentil pássaro sarar depois da muda seguinte, e quando já estava capaz de voar, soltei-o. Na mesma hora retomou para junto de seu dono em Woerden. Mas vinha visitar-nos regularmente e era um hóspede querido. Certa vez desapareceu por várias semanas. Quando retornou notei que um de seus artelhos posteriores havia quebrado e soldado torto. Justamente esse artelho quebrado é que encerra a graça da história de Hansl, a gralha falante. Nós sabemos como conseguira esse defeito. E quem nos contou? Acreditem ou não, foi o próprio Hansl que nos contou! Pois quando retornou após sua longa ausência, Hansl sabia uma frase nova. Com voz de peralta falava as seguintes e difíceis palavras: “Foi com um martelo que o prenderam!”

Não se podia duvidar da veracidade dessa informação. Assim como o Papagallo, Hansl gravou essa frase que com certeza não ouvira com freqüência, porque a ouvira a máxima excitação, com certeza logo após ter sido presa. Como conseguiu fugir, isso Hansl, infelizmente, não nos contou.

Nesses casos um amigo de animais é capaz de jurar que a ave entende o que fala. Mas nem se fale nisso. Mesmo esses pássaros “falantes” que, como já vimos, são capazes de relacionar suas palavras com certos pensamentos e acontecimentos, nunca aprendem a alcançar a finalidade mais simples com o seu saber.

Otto Koehler, que registra os maiores resultados no adestramento científico de aves, o homem que treinou pombos de forma que eles conseguiam realmente contar até seis, também tentou com o seu talentoso papagaio cinzento Abutre, que já mencionamos, adestrá-lo para que dissesse “alimento”, se estivesse com fome, e “água”, se sentisse sede. Isso ele não conseguiu, e até agora ninguém mais logrou algo semelhante. Esse fato é em si bastante surpreendente porque o papagaio pode “associar” o que diz com qualquer movimento que o leve a alcançar o objetivo que ambiciona. Movimentos que visam unicamente a causar no dono deles uma determinada ação.

Um comportamento muito cômico e grotesco, nesse sentido, tinha um pequeno papagaio manso, um periquito de Nanday que Karl von Frisch possuía. Conforme costume, esse cientista só deixava esse pássaro esvoaçar em liberdade pelo quarto por uns tempos, depois de observar uma dejeção do animal, o que garantia que durante dez minutos não tinha nada a temer pelos lindos móveis. Em pouco tempo, o periquito entendera essa relação e como tinha paixão de voar em liberdade, assim que via o professor von Frisch aproximar-se de sua gaiola, demonstrativamente forçava e expelia uma manchinha. Mesmo quando não lhe era possível produzir nada de efetivo, ainda assim se esforçava desesperadamente. Tanto se sacrificava que corria o risco de passar mal. Vendo-o assim Von Frisch o deixava em liberdade.

E o inteligente “Abutre”, muito mais inteligente que o pequeno periquito, não aprendia de forma alguma a falar “comida” se quisesse comer. Todo esse complicado aparelho da laringe e do cérebro que nos permite o relacionamento de idéias e a imitação, não nos parece ter nenhuma função compreensível para desenvolver a conservação da espécie. Pode-se indagar em vão sobre “para que” existe.

Só conheci uma ave que conseguiu usar uma palavra humana quando queria algo, que liga portanto uma finalidade a uma expressão sonora aprendida. E isto, certamente, não é coincidência, pois foi uma ave que eu considero espiritualmente a mais superior de todas, ou seja, uma gralha cinzenta que tem um grito inato que corresponde ao “Kiá” das gralhas e a um convite de voar junto: é um forte, metálico e sonoro “Rackrack” ou “Krackrackack”. Se a ave quer fazer um semelhante seu voar junto consigo, faz os mesmos movimentos como vimos na gralha em casos semelhantes: por trás ela sobrevoa o outro, com as asas bem coladas balança bem junto do outro e ao mesmo tempo grita bem alto e forte o seu “Krackrackrack”, que ressoa como uma seqüência de pequenas explosões.

Essa gralha “Roa”, chamada conforme o chamariz dos filhotes dessa espécie, ainda na velhice era íntima amiga minha e quando não tinha outra coisa a fazer, acompanhava-me em longos passeios, até mesmo em passeios de barco a motor no Danúbio ou excursões de esqui na neve. Especialmente quando já alcançara idade avançada, ela não só passou a ser tímida em relação a outras pessoas, corno também tinha aversão de lugares onde anteriormente havia-se assustado ou tido alguma experiência desagradável. Em tais lugares, além de não querer descer para junto de mim, ela não tolerava que eu permanecesse nos lugares que considerava perigosos. E da mesma forma como as gralhas-pais fazem com os filhotes descuidados, tentando fazê-los voar consigo, “Roa” nesses casos caía sobre mim em vôo rasante, por trás bem junto da minha cabeça balançando com a cauda e levantando vôo novamente; ao mesmo tempo me olhava por sobre o ombro. Junto com esse movimento inato, herdado, não gritava o chamariz próprio da sua espécie, senão chamava com som de voz humana: “Roa, Roa, Roa”! O impressionante nesse fato era que “Roa” também tinha o chamariz específico e correspondente no vôo ao “Krackrackrack” e que sempre aplicava em relação às outras aves. Se quisesse que sua esposa voasse com ele então dizia “Krackrackrack”, para seu amigo humano, porém, dizia a palavra humana! Cogitar em adestramento, nesse caso, é impossível. Só pode ter acontecido que a ave a princípio disse por acaso “Roa”, e que eu, da mesma forma, por acaso, teria ido até ela. Isso, porém, com certeza não ocorreu. Portanto, a velha gralha deve ter imaginado que “Roa” era o meu chamariz. Assim sendo, Salomão não foi o único que sabia falar aos animais, mas “Roa” é até agora o único animal que falou com sentido e conhecimento para um homem uma palavra humana, mesmo que se trate de um simples chamariz.