quarta-feira, janeiro 24, 2007

IV - Sangue-frio

É impressionante com que fé cega são aceitas as verdades dos provérbios e ditados. Mesmo quando o que dizem é falso e errado: a raposa não é mais astuta que outros carnívoros e muito mais boba que o lobo ou o cachorro; a pomba não é nada dócil; sobre peixes em geral só se espalham falsidades: eles não têm nem tanto "sangue-frio" como se diz sobre pessoas enfadonhas, nem são tão saudáveis como expressa o ditado "como um peixe n'água".

Seguramente não há na natureza livre nenhum outro grupo animal que seja tão atormentado por doenças contagiosas como os peixes. Nunca vi nenhum pássaro, sáurio ou mamífero recém-aprisionado transmitir doenças contagiosas para meus animais; ao contrário, qualquer peixe tem que ficar num aquário em quarentena. Senão, aposto cem contra um, aparecem num curto espaço de tempo os temíveis pontinhos brancos nas barbatanas dos antigos habitantes do aquário, sinais da infecção com as parasitas Ichthyphtirius. E ainda, contrariando uma conhecida melodia, não se conhecem tão bem em nenhum outro animal a prodigalidade e sentido do beijo, como em algumas espécies de peixes. Conheço muitos animais e seu comportamento nas situações mais íntimas de suas vidas, no êxtase selvagem da luta e do amor – mas não conheço nenhum animal, fora o canário selvagem, que ultrapassasse no ardor e no temperamento por ocasião do acasalamento o macho gastrósteo, um peixe lutador siamês ou uma perca multicolor (Cichlidae). O amor não transforma tanto nenhum outro animal, nenhum se entusiasma, no verdadeiro sentido da palavra, com tal paixão como o gastrósteo ou o peixe lutador. Quem poderia retratar com palavras ou pintar as cores: aquele vermelho brilhante que faz os lados do gastrósteo macho se tornarem transparentes como vidro, o penetrante azul-esverdeado das costas, cujo colorido e intensidade só podem ser comparados aos tubos Geissler, ou finalmente o verde-esmeralda fulminante dos olhos? Segundo as regras da pintura, essas cores deveriam destoar-se horrivelmente, porém feitas pela mão do Grande Mestre oferecem uma sinfonia.

No peixe lutador esse rico colorido não é contínuo. O pequeno peixe cinza-pardo que está num canto do aquário com as barbatanas fechadas ainda não denuncia nada disso. Só quando um outro não menos vistoso que o primeiro dele se aproxima e ambos se olham, então brilha a pompa inacreditável, e isto quase tão rapidamente como se avermelha uma resistência de aquecimento quando ligada à eletricidade. As barbatanas se abrem em formas ornamentais, tão rapidamente, que se esperaria ouvir algum ruído, como quando se abre rapidamente um guarda-chuva.

E então segue uma dança de paixão ardente, uma dança que não é brinquedo, mas seriedade profunda, uma dança de ser ou não ser, de viver ou perecer. Pois logo ficará definido se levará a uma ronda de amor e ao acasalamento, ou se vai se desenvolver uma luta sangrenta. Os peixes lutadores não reconhecem o gênero do sexo de seu semelhante em se olhando, senão pelo modo como o parceiro reage, com movimentos instintivos, rigorosamente ritualizados e herdados, ao outro dançarino.

O encontro de dois peixes lutadores começa com a denominada "postura imponente", uma vangloriosa auto-exibição, na qual todos os possíveis pontos brilhantes e intensos raios das maravilhosas barbatanas são levados a um efeito máximo. Diante do esplendor de um macho, a fêmea arreia logo a bandeira, entende-se no verdadeiro sentido da palavra, isto é, fecha as barbatanas e, caso não deseje o acasalamento, foge imediatamente. Mas, caso concorde, se aproxima do macho de uma forma especialmente doce e tímida, com uma postura exatamente oposta à imponente. Então se desenvolve uma ronda de amor, que concorre com a leveza graciosa dos movimentos, por ser inferior no brilhantismo da dança de guerra de dois machos.

Quando porém dois machos se encontram, então ocorrem verdadeiras orgias de vanglórias recíprocas; estes são o máximo em beleza estética que um aquário pode oferecer. Cada movimento segue regras determinadas e tem um sentido "simbólico", semelhante ao dos gestos nas danças rituais dos siameses e indonésios. Há uma acentuada semelhança entre o estilo e a graça na paixão refreada dos homens e dos animais. De certo modo se nota que alguns movimentos trazem em si longo desenvolvimento histórico e devem essa sutileza em suas formas a rituais antigos. Esse ritual, porém, sem dúvida representa, nos homens, os resultados das tradições históricas de um povo, mas nos animais um desenvolvimento herdado, enraizado e inato de formas de movimento da espécie. A pesquisa das raízes da procedência de tais movimentos "ritualizados", da expressão e a comparação da semelhança de tais cerimônias é muito elucidativa. Sabemos mais sobre a história de tais movimentos do que da origem dos chamados "instintos". Bem, mas isso pertence a outras folhas.

Depois dessa excursão voltemos à dança de guerra dos machos. Ela se reveste exatamente do mesmo significado que o duelo de ultraje e exibição dos heróis homéricos ou dos camponeses dos Alpes que até hoje são motivo suficiente para deflagrar brigas nas tabernas. Começa-se por intimidar o inimigo, ao mesmo tempo que se procede a uma auto-incitação a fim de adquirir-se coragem para enfrentar o desafio.

A longa duração do prelúdio, seu caráter ritual, e principalmente pelo luxo da riqueza nas cores e desenvolvimento das barbatanas, que só servem para intimidar e não para uso na ação, tudo isso aos olhos de um principiante carece de uma seriedade ameaçadora. Especialmente sua beleza deixa os lutadores parecerem menos maldosos do que na realidade o são. Poderíamos pensar que essa coragem tenaz e mortal é quase como a beleza afeminada dos guerreiros malaios que, entretanto, lutam até a morte. Realmente, na maioria das vezes as lutas dos peixes lutadores resultam na morte de um deles. Quando a excitação chega ao ponto de se trocarem as primeiras punhaladas não passa muito tempo a surgirem longos rasgões nas barbatanas, que em alguns minutos ficam esfarrapadas. O ataque do peixe lutador, como na maioria dos peixes de combate, é realmente a punhalada e não a mordida. O peixe abre a mandíbula o suficiente para que seus dentes enrijeçam para a frente, posição em que se lança com toda a força musculosa de seu corpo sobre a parte lateral do inimigo. O golpe desse peixe lutador de alguns centímetros é tão forte e duro que quando ele erra o alvo e bate contra a parede do aquário, ouve-se um pancada claríssima.

A exibição pode durar de meia até uma hora; mas, começadas as hostilidades, leva só alguns minutos até que um dos combatentes, mortalmente ferido, cai no chão.

Totalmente diferente dessas lutas dos peixes lutadores siameses são as dos nossos gastrósteos europeus. Ao contrário do peixe lutador, o gastrósteo não só resplandece no período de acasalamento ao ver um inimigo ou uma dama, como também ao encontrar-se nas proximidades do local que escolhera para ninho.O princípio de sua luta é: "Minha casa é meu castelo". Se tirarmos um gastrósteo de seu ninho, ou o retirarmos de sua bacia natal, ele não pensará em lutar, senão ficará pequeno e feio. Seria impossível usar gastrósteos para exibição de lutas como fazem os siameses, há séculos com seus peixes lutadores. Somente depois de encontrar o lar é que o gastrósteo é capaz de se desenvolver fisicamente e entrar no cio; só é possível assistir uma luta séria entre gastrósteos mantendo-os em uma bacia grande onde dois machos constroem seus ninhos. O desejo de luta do gastrósteo varia a cada momento, estando em proporção contrária à distância do local do seu ninho. Junto ao ninho ele é um guerreiro selvagem, abalroado com uma coragem mortal até a mão humana. Mas, quanto mais se afasta do seu quartel-general, menos intenso fica seu desejo de atacar. Quando dois machos se encontram, pode-se prever seguramente como terminará a luta: foge aquele que se encontra mais distante da casa. Na proximidade imediata de seu ninho, o menor de todos bate no maior, a relativa força de luta de cada um se expressa na extensão do território que deseje manter livre dos rivais. É claro que o perdedor foge para casa; da mesma forma é compreensível que o vencedor persiga ferozmente o outro. Entrementes ele vai se distanciando, do seu quartel-general, e sua coragem vai diminuindo na mesma proporção, como vai aumentando a do fugitivo vencido. Ao chegar na proximidade de seu ninho, este há pouco ainda acovardado, ganha novas forças, vira de repente e avança com ferocidade contra o seu perseguidor. Então se desenvolve uma nova luta que termina seguramente com a vitória do antigo perdedor, e assim a caça continua no mesmo caminho.

Todo esse processo se repete algumas vezes, a perseguição recíproca varia entre os dois territórios como as batidas de um pêndulo, que vão diminuindo até terminar numa "fronteira" mais ou menos constante. Nas lutas tomam posição de ameaça, um frente ao outro, as cabeças para baixo e os rabos para cima. Ao mesmo tempo viram os lados largos na direção do inimigo ameaçando com uma espinha da barriga, fazendo movimentos peculiares, golpes para baixo, como se os animais quisessem pegar alimento do solo, mas que na verdade são movimentos “ritualizados” da ação de cavar seus ninhos. Podemos observar movimentos sempre quando os peixes já não têm coragem para agir com violência.

Diferentemente dos peixes lutadores, os gastrósteos não ameaçam antes do começo da briga, pelo contrário, logo começam com golpes e choques tão rápidos, que mal podem ser acompanhados pelo observador. A grande espinha da barriga que dá a impressão de tão perigosa, só desempenha papel secundário; mesmo assim essa luta "corpo a corpo" dos gastrósteos nos parece muito mais perigosa que a dança de guerra dos peixes lutadores; apesar de estes, depois dos primeiros golpes, deixarem profundos rasgos nas barbatanas, nos outros é impossível verificar a olho nu algum ferimento. Mesmo que seja possível ler no novo Brehm que "as espinhas são usadas com tanta violência que freqüentemente um dos lutadores mortalmente apunhalado cai ao chão", isto demonstra que o escritor nunca tentou perfurar um gastrósteo. Pois, mesmo com um escalpelo bem afiado, o gastrósteo escapa algumas vezes até que se consiga penetrar em sua pele dura até nas partes em que não há couraça. Coloque-se um gastrósteo morto sobre algo macio (que sempre será menos movediço que a água) pegue-se uma agulha de costura (que é cem vezes mais afiada que uma espinha de gastrósteo) e tentemos espetar o animal. Nós nos espantaremos. Naturalmente, num espaço muito pequeno é possível que um gastrósteo macho e forte com sua perseguição sem fim, ao rasgar as barbatanas e a pele externa do outro, leve à morte deste, mas algo parecido também ocorre com os coelhos e os pombos.

Estes peixes temperamentais também são diferentes no mar. Apesar disso, eles têm algo em comum. Em ambos é o macho e não a fêmea que se responsabiliza pela construção do ninho e pelo cuidado com a ninhada. E em ambos o futuro pai de família não pensa no amor antes de terminar por completo o berço dos filhotes. Aqui, porém, cessam as semelhanças e principiam os contrastes. O berço do gastrósteo fica debaixo do assoalho e o do peixe lutador debaixo do teto; isto é, um faz uma cova no solo da água e o outro, dir-se-ia, na superfície; um utiliza na construção fibras de vegetais e secreção dos rins; o outro, ar e saliva.

O castelo de ar dos peixes lutadores, como também de seus parentes próximos, consiste num amontoado de bolhas de ar coladas umas nas outras e cobertas com uma saliva resistente, duradoura e sobressaindo na superfície. Já durante a construção o macho reluz em suas esplendorosas cores que aumentam de intensidade assim que uma fêmea se aproxima. Como um raio, o macho se atira na direção dela, e pára rutilante. Caso a dama esteja disposta a seguir o convite da natureza, demonstra isso tomando uma coloração característica e com listras claras e irregulares. Com as barbatanas bem fechadas, devagar, ela vai nadando em direção ao macho, o qual, com as barbatanas quase rasgando de tão abertas, oferece um dos lados largo e deslumbrante para sua cortejada. Neste momento, com movimentos graciosos e ondulantes sai nadando em direção do ninho. Mesmo quando se vê pela primeira vez, a característica de convite desse gesto é logo reconhecida. Do mesmo modo se compreende logo a essência do "ritual" nos movimentos do nado: tudo que pode alcançar um efeito ótico é exagerado pela mímica, como a ondulação do corpo ou o abanar do rabo. Pelo contrário, tudo que os faz terem um efeito mecânico é diminuído, pois o movimento diz: "Eu vou sair nadando, corre para me acompanhar"; porém na mesma hora o peixe, sem nadar longe demais, logo retoma até a fêmea que hesitante e timidamente o acompanha.

Assim, a femeazinha é atraída até debaixo do ninho de espuma. Então, segue uma maravilhosa roda de amor que recebeu nos Alpes, dos amigos de peixes decorativos, a denominação de sua dança folclórica, Schuhplattler (Batedor de botas) sem dúvida uma falta de gosto, pois a roda tem a graciosidade e leveza de um minueto, que no todo faz lembrar a dança de transe das dançarinas dos templos da Tailândia. Seguindo regras seculares, nesta dança de amor o homem sempre fica virado de lado para sua dama, a qual por sua vez deve estar sempre em ângulo reto a ele. Por sua vez em momento algum o senhor deverá ver as costas dela, pois se isso acontecer ele fica zangado e grosseiro. Nesses peixes, como em tantos outros, ficar de lado significa disposição masculina para luta, ocasionando uma total mudança de humor: a maior paixão se transforma em ira selvagem.

Como agora o macho não quer sair do ninho, fica girando ao redor da fêmea, que acompanha todos os seus movimentos de frente, e a roda vai-se fechando sempre em círculos menores bem no centro do ninho de espuma.

As cores vão ficando sempre mais brilhantes, os movimentos mais excitados, os círculos se fechando até que os corpos se toquem. Então, o macho enlaça com o corpo a fêmea virando-a de costas e tremendo, realizam o grande ato da procriação: ambos expelem ao mesmo tempo os ovos e o sêmen.

Depois do acasalamento a fêmea, aturdida, continua de costas por alguns segundos, mas o macho logo a seguir tem algo importante a fazer.

Os pequenos ovos transparentes são muito mais pesados que a água, e logo afundam. É por isso que a posição do acasalamento foi tão sabiamente preparada, que os ovos ao afundarem passam junto da cabeça abaixada do macho, que logo toma conta deles. Com cuidado, ele se solta de seu abarcamento, desce atrás dos ovos e os recolhe, um por um em sua boca, trazendo-os logo até o ninho de espuma, escondendo-os entre as bolhas de ar. É extremamente necessário que ele se apresse, pois caso demore muito tempo não só não encontraria mais no lodo as bolinhas transparentes, como a fêmea também acordaria e nadaria para recolher os ovos. Bem, você com certeza achaque ela gostaria de ajudar o marido a prontamente colocar os ovos no ninho. Pois sim, você esperaria em vão, porque esses ovos estariam perdidos, engolidos e comidos para sempre.

O macho sabe bem porque se apressa tanto e porque, depois de dez a vinte acasalamentos, tendo sua reserva de ovos esgotada, não suporta a presença da fêmea perto do ninho.

Bem diferente é o cerimonial das cavalheirescas percas multicolores, ou Cichliden Neste caso ambos os sexos cuidam dos descendentes, que em bandos fechados acompanham os pais como. Os pintinhos a galinha. Pela primeira vez na ordem ascendente dos animais vivos, podemos verificar no comportamento da perca multicolor algo que os homens consideram benemérito e moralista: o macho e a fêmea permanecem unidos em estreita comunhão, mesmo depois de realizarem com sucesso a obra da procriação, além do período necessário para cuidar da ninhada. Em geral já se considera um "casamento" quando ambos os sexos cuidam juntos da criação da ninhada, mesmo não existindo um laço "pessoal" em relação ao esposo. Nos Cichliden, porém, isso existe.

Para verificar objetivamente se um animal reconhece seu consorte como um indivíduo, é necessário substituí-lo na experiência por um outro animal do mesmo gênero que se encontre na mesma fase no ciclo de reprodução. Por exemplo, substitui-se a fêmea num casal de pássaros que esteja chocando por uma outra que já esteja na fase psicológica da alimentação dos filhotes, é claro que seu procedimento instintivo não combina com o do macho. Necessariamente, logo começam desacordos nos quais é difícil dizer se o pássaro macho realmente nota que a fêmea presente não é a esposa anterior, ou se ele só leva a mal o seu "comportamento falso". Naturalmente para mim era de maior interesse saber como seria no caso dos Cichliden, os únicos peixes que formam um casamento, o comportamento nesse sentido. Para fazer a experiência eram necessários dois casais da mesma espécie que se encontrassem na mesma fase de procriação. Essa condição só foi preenchida em 1941 por dois casais de maravilhosos Herichthys cyanoguttatus sul-americanos, denominados "Peixe-herói" com pontinhos azuis. Essa denominação é deveras acertada: sobre um fundo aveludado preto formam-se pontos como gotas de um azul-turquesa brilhante, constituindo um mosaico entrelaçado de uma beleza impressionante. Nesses peixes o casal do cio desenvolve uma coragem de herói diante do maior inimigo, o que justifica sem dúvida o nome. Meus cinco jovens peixes dessa espécie não estavam ainda nem coloridos nem com coragem heróica. Depois de algumas semanas de alimentação esmerada e demonstrando bom crescimento num aquário grande e ensolarado, certo dia em um dos peixes maiores apareceram os primeiros pontos azuis e ao mesmo tempo a coragem. O peixe apossou-se do canto esquerdo dianteiro do aquário, começando a cavar algumas covas profundas, preparando uma pedra grande e lisa, isto é, limpando-a das algas e outras crostas (antes havíamos colocado pedras especiais no canto do aquário). Os outros quatro peixes permaneciam amedrontados em grupo no canto direito ou na parte de trás da área. Mas logo na manhã seguinte, um outro menor já tinha colocado seu traje de esplendor; o peitilho, de um preto aveludado sem manchas azuis, demonstrava que o animal era uma fêmea. O macho logo principiou o cerimonial, a fim de trazer sua escolhida para casa, tal como ocorre com os peixes lutadores e os gastrósteos.

O casal já se encontrava sobre a pedra mencionada para a desova e as covas do ninho e ferozmente defendiam a região. Os três outros peixes restantes não tinham mais muito do que rir, e conforme já diz o nome sobre a coragem heróica desses animais, após alguns dias o segundo maior deles amadureceu em sua masculinidade tomando posse da parte dianteira direita do canto do aquário.

Assim, ambos os machos encontravam-se frente a frente, como dois cavalheiros inimigos em suas fortalezas. O limite encontrava-se mais próximo da área do segundo a entrar mais tarde no cio, o que é bem compreensível considerando-se que ao sair do seu canto sempre tinha dois inimigos no seu encalço, mesmo sendo o ataque da fêmea bem menos feroz que o do macho. O macho solitário, denominemo-lo simplesmente de número dois, sempre saía de sua fortaleza nadando em águas livres, tentando atrair a fêmea do número um a fim dela segui-lo até seu ninho. Essas tentativas, porém, não tinham resultados. Apenas levava a fêmea número um a desfechar violentos golpes em suas costas, quando ele tentava atraí-la. Essa situação perdurou sem modificações, durante alguns dias.

Então pareceu que ia acontecer um desfecho feliz com um duplo casamento, porque uma segunda fêmea havia colocado o vestido de noiva. Mas não aconteceu nada disso. Nem o macho número dois se preocupava com essa nova fêmea no cio, como também ela estava desinteressada dele.

Mais e mais ela tentava oferecer-se para o macho número um. Toda vez que o macho número um nadava em direção de seu ninho, a fêmea número dois o acompanhava como se fosse levada ao ninho. Ela "se sentia atraída em direção ao ninho" quando esse macho se movimentava em direção do ninho. A esposa deste parecia estar totalmente ciente da situação, e assim que a perturbadora se aproximava ela a atacava com a maior violência, o que o macho só fazia muito por alto. O macho dois e a fêmea dois não tomavam conhecimento um do outro, só tinham olhos para o casal amante, que por sua vez não s considerava de forma alguma.

Essa situação teria perdurado por um longo período se eu não tivesse interferido, colocando o casal número dois em um outro aquário idêntico. Separados de seus objetos adorados inutilmente, brevemente se encontraram, transformando-se em um par. Depois de alguns dias ambos os casais desovaram na mesma hora. Bem, agora eu tinha o que desejava, isto é, dois pares de Cichliden na mesma fase do ciclo de reprodução. Como a criação desses peixes, já naquela época raros, me prendeu mais, para realizar minha experiência esperei que os filhotes de ambos os casais estivessem suficientemente crescidos, a fim de, em caso de necessidade, ou seja, numa total incompatibilidade matrimonial dos pais, pudessem sobreviver sozinhos.

Então fiz as trocas das fêmeas. O resultado foi discrepante e não serviu como resposta para a pergunta, sobre se o peixe conhece sua fêmea pessoalmente. A interpretação que dei para o que se segue pode parecer ousada para alguns e necessitaria ser confirmada por experiências subseqüentes. O macho número dois aceitou logo a fêmea número um. Não me pareceu que ele não tivesse notado nenhuma diferença, pelo contrário, seus movimentos na troca de sentinela e em cada encontro com a fêmea me pareciam acrescidos de fogo e intensidade. A fêmea por seu lado aceitava as cerimônias de seu macho e sem atrito se enquadrava em seu papel nos cuidados com a ninhada. Isso não me demonstrava muita coisa porque a fêmea "Peixe-herói", como uma galinha-choca caprichosa, se concentra intensamente no bando dos pequenos filhotes, tendo no macho só o interesse como defensor da famí1ia e de tempo no revezamento da função.

Totalmente diferente eram os acontecimentos no outro aquário, onde eu tinha colocado a fêmea número dois junto ao macho número um e dos filhotes deste. Aqui também a fêmea só tinha olhos para os filhotes, nadando logo na direção do bando; como se encontrava irritada pela mudança, colocou-se sobre os filhotes e, tal qual uma galinha assustada, começou a recolhê-los ao seu redor. A mesma coisa havia feito a fêmea número um no outro aquário. Mas enquanto o macho número dois aceitava com cerimônia amigável e brilhante a troca com a fêmea colocada ali, o macho número um permanecia desconfiado junto do bando de filhotes e, não se considerando substituído, atacou a fêmea desprevenida com um golpe nas costas desprotegidas. Logo caíram algumas escamas prateadas até o chão como flocos. Intervi rapidamente para salvar a femeazinha , que em alguns minutos teria sido esfolada até a morte.

O que havia acontecido? Bem, o peixe que ganhara a fêmea mais bonita, pela qual já se interessara anteriormente, estava satisfeito com a troca. O outro, do qual eu havia retirado a mulher bonita e em troca lhe colocara a dama que ele já havia recusado, estava com toda razão furioso. O impressionante era que ele a atacou com muito maior ferocidade que antes, quando ainda estava na presença da verdadeira mulher. Penso que o macho número dois, que na troca levou a "melhor", notou a diferença, mas não posso jurar.

Mais interessante ainda para o observador e ainda mais excitante que os casos de amor é o cuidado com os filhotes desses peixes notáveis. "O serviço" consciencioso junto ao ninho, como o abanar da água do gastrósteo enquanto o berço ainda contém ovos ou filhotes, a exatidão militar na substituição de um parceiro pelo outro, e mais tarde, quando os filhotes já conseguem nadar, o cuidado em guiar e acompanhar o bando, essas são imagens que não se esquecem. O mais belo é quando os filhotes, já nadadores, são levados à noite para dormir. Isso mesmo! Até uma idade de várias semanas, assim que escurece, os filhotes são levados de volta às covas do ninho onde se criaram. A mãe fica sobre o ninho e com movimentos precisos atrai os filhotes até lá. No Hemichromis bimaculatus (Peixe-jóia) a barbatana das costas da fêmea tem um papel muito especial nesse caso com seu colorido vermelho e os pontinhos azuis brilhantes. A barbatana
é abanada rapidamente para. cima e para baixo, fazendo as jóias azuis brilharem como o reflexo de um espelho. A esse sinal os filhotes retomam nadando e se reúnem debaixo da mãe na cova. Enquanto isso o pai corre por todo o aquário procurando algum retardatário, o qual ele não fica atraindo por mais tempo: simplesmente o inala na cavidade bucal, nada até onde estão os outros e o sopra para dentro do ninho.

O filhote tratado desse modo afunda logo no chão e fica deitado.

Através de uma disposição de reflexo, a bexiga natatória dos filhotes de Cichliden adormecidos se contrai tanto que eles ficam muito mais pesados que a água, permanecendo deitados na cova como pedrinhas, da mesma forma como quando eram recém-nascidos e sua bexiga natatória não estava repleta de água. Essa mesma reação de "ficar pesado" ocorre se um dos pais coloca um filhote na boca. Sem esse mecanismo de reflexo seria impossível ao pai recolher à noitinha os filhotes.

Exatamente ao transportar, certa vez, para casa um filhote desgarrado é que vi um macho (peixe-jóia) fazer uma proeza que me impressionou. Ao final de uma tarde cheguei ao Instituto. Já estava escurecendo. Mesmo assim eu ainda queria alimentar alguns peixes que ainda não haviam recebido nada, entre eles um "peixe-jóia" que levava um filhote.Ao chegar junto ao aquário quase todos os filhotes já estavam na cova do ninho sobre a qual se encontrava a mãe em fiel sentinela. Ela já não veio comer quando joguei os pedaços de minhoca no aquário. O pai porém, que nervoso procurava por todo o aquário pelos filhotes desgarrados, deixou-se distrair por um bonito pedaço posterior de uma minhoca (por motivos ainda desconhecidos essa é a parte mais apreciada pelos comedores de minhoca). Ele veio nadando e pegou a minhoca que não conseguiu engolir de uma vez por ser grande demais. Exatamente quando ainda mastigava com a boca cheia viu um filhote sozinho nadando pelo aquário. Como se fosse eletrificado perseguiu o filhote e pegou-o em sua boca já cheia. Isso era palpitante. O peixe estava com duas coisas na boca, sendo que uma deveria ir ao estômago e a outra para a cova do ninho. O que iria acontecer? Eu tenho que confessar que naquele momento não teria dado nenhum centavo pela vida daquele peixinho.

Mas, é fantástico o que realmente aconteceu. O peixe ficou imóvel com as bochechas cheias, mas sem mastigar. Bem, se algum dia vi um peixe refletir, esse foi o momento. Se considerarmos como é fantástico que um peixe pode chegar a uma verdadeira situação de conflito e que no caso o animal se comporta exatamente como o homem, isto é, bloqueia em todos os sentidos sem poder ir para frente ou para trás.

Muitos segundos, como que cercado o pai Hemichromis continuava parado, mas podia-se ver claramente como trabalhava por dentro. Aí então ele resolveu o conflito da seguinte forma, pela qual devemos sentir admiração. Ele cuspiu todo o conteúdo da boca, a minhoca e o filhote caíram no fundo. Então o "peixe-jóia" dirigiu-se decidido em direção à minhoca, devorou-a sem pressa, mas mantendo um olho atento em direção do filhote "obediente" que continuava no chão. Ao terminar inalou-o, levando-o para casa até a mãe.

Alguns estudantes que assistiam a tudo começaram a aplaudir a um só tempo.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

III - Dois vilões no aquário

Cruéis vilões habitam o mundo do charco. Diante de nossos olhos vemos a terrível luta pela sobrevivência.Se esvaziarmos em um aquário o conteúdo da nossa pesca com o coador, que não seria copiosa, teremos logo um ensaio dessa luta, pois provavelmente entre esses animais se encontrará a larva de um coleóptero d'água (Dytiscus). Em relação à proporção do tamanho da presa, à voracidade, o refinamento na arte de matar, carnívoros mal afamados como tigres, leões, lobos, tubarões e vespas venenosas desaparecem comparados a esses animais. São todos uns cordeiros perto dessa larva.

Ela é um inseto esbelto, alongado, de aproximadamente 6 cm de comprimento; os pêlos espessos em suas seis patas servem-lhe de remo, permitindo-lhe movimentos rápidos e seguros na água. Sua cabeça larga e achatada tem dois maxilares em forma de alicate, que servem de injetores de veneno de sugadores do alimento. Este animal fica sentado, quieto sobre uma planta aquática, na espreita; de repente, num impulso rápido se aproxima da presa, isto é, por baixo dela, levantando a cabeça como um raio, e prendendo a vítima com seu alicate. Para esse vilão, qualquer coisa que se movimente ou cheire como animal é uma "presa". Já me aconteceu algumas vezes ter sido agredido por uma larva dessas, ao encontrar-me quieto num charco; mesmo para o ser humano é muito dolorida a sua picada venenosa.

Essas larvas de coleópteros pertencem ao grupo dos poucos animais que fazem digestão "externa". A secreção glandular que injetam com os maxilares nas presas transforma todo o interior da vítima numa sopa, que é levada pelo mesmo canal até o estômago da larva. Mesmo presas maiores como a gorda larva de anfíbios e a larva da libélula, quando mordidas por uma larva de Dytiscus, enrijecem após alguns movimentos defensivos, e seu interior, transparente como na maioria dos animais aquáticos, fica turvo como se fosse fixado em formol, o animal parece inchar no princípio, mas murcha logo em seguida como um saco de pele, pendurado no alicate mortal, que logo depois a larga.

No estreito espaço de um aquário, essas larvas de Dytiscus devoram em alguns dias todos os seres vivos maiores que meio centímetro. E depois? Então se devoram mutuamente, se é que já não fizeram isso antes; na verdade não depende da força ou do tamanho, só de quem ataca primeiro. Já observei várias vezes duas larvas, aproximadamente do mesmo tamanho, atacarem-se e morrerem ambas na rapidez da dissolução de seus órgãos interiores. Mesmo na maior necessidade e no perigo de morrerem de inanição muito poucos são os animais que atacam os semelhantes a fim de come-los. Com certeza só sei disso entre os roedores Rattus norvegicus; duvido que lobos façam o mesmo, pois me baseio em fatos claros que relatarei depois. Essas larvas de Dytiscus, porém, devoram seus semelhantes mesmo quando há suficiente alimento. Que eu saiba, nenhum outro animal faz isso.

Um pouco menos brutal, mais elegante e bonita é a larva da libélula Aeschna, magnífico vilão com desenhos azuis e amarelos, também chamado "agulha-do-diabo". O inseto adulto é um voador fantástico, um falcão entre os insetos. Se entornarmos o que colhemos no charco numa bacia para lavar, a fim de separarmos os vilões mais terríveis, encontraremos uma larva linear que nos chamará a atenção pelo modo diferente de locomover-se. Elegantes, na maioria das vezes com desenhos verdes e amarelos, esses torpedos disparam rápidos e aos empurrões com as pernas compridas contra o corpo; no princípio fica-se em dúvida sobre com que é que se movimentam. Se as observarmos separadamente num recipiente raso, veremos que essas larvas são como foguetes. Da parte traseira de seu corpo sai um esguicho que movimenta o animal aos empurrões, mais rapidamente em frente. A última parte do intestino forma uma bolha oca, suficientemente provida de guelras de traquéia, servindo de um modo muito útil ao mesmo tempo para a respiração e a locomoção.

Essas larvas Aeschna nunca caçam nadando, elas são, ainda mais que as larvas de Dytiscus, caçadores de espreita: ao entrar no seu campo visual a presa fica fixada; bem devagar a larva vai virando o corpo e a cabeça na direção da presa, acompanhando-lhe os movimentos. Somente em alguns invertebrados pode-se observar esse fenômeno de fixar a cobaia. Ao contrário das larvas de coleópteros, as larvas Aeschna vêem também os movimentos lentos como o rastejar de um caramujo, que por isso são vítimas freqüentes da larva da libélula e só raramente das larvas de coleópteros. Devagar, muito devagar, passo a passo a larva vai-se aproximando da presa, ainda há uns três ou quatro centímetros de distância, de repente – o que houve? – ela está com a vítima entre as mandíbulas. Como não se tem câmara lenta nos olhos só deu para observar algo como uma língua comprida saindo da cabeça da larva em direção da presa, puxando-a para suas ávidas mandíbulas. Se já se observou um camaleão alimentando-se, lembraremos dos vários movimentos de sua grudenta língua. Só que o bumerangue da larva Aeschna não é uma língua, mas o lábio inferior, que se compõe de duas articulações e um alicate.

Pela capacidade de fixar a presa, as larvas da libélula nos parecem particularmente inteligentes; essa impressão aumenta se observarmos outras peculiaridades em seu comportamento. Ao contrário das ferozes larvas de Dytiscus, mesmo passando semanas de fome a larva da libélula não importuna animais acima de um determinado tamanho. Já mantive larvas de Aeschna durante meses numa bacia com peixes e nunca vi atacarem ou prejudicarem algum que fosse maior que elas. É impressionante como esses animais jamais avançam sobre uma presa apanhada por um de seus semelhantes mesmo se esta ainda se debate entre as mandíbulas do atacante. Mas quando eu colocava um pedaço de carne fresca diante de seus olhos, movimentando-a como se fosse uma presa de outro, elas pegavam logo.

Em meu grande aquário de percas sempre se desenvolvem algumas larvas de Aeschna, cuja evolução demora mais de um ano. Então num belo dia de verão ocorre o grande momento; a larva sobe pelo caule de uma planta e sai da água; ali fica sentada, quieta, por longo tempo, e então, como se descascasse, a pele externa das costas estoura, e o maravilhoso inseto, perfeito, devagar, se liberta do invólucro da larva. Depois ainda demora várias horas até que as asas alcançam o tamanho definitivo e endurecem; é um fenômeno maravilhoso a rapidez como o líquido enrijecedor é bombeado com intensa pressão nas hastes das artérias das asas. Então você abre a janela e deseja muita sorte e sucesso para seu hóspede de aquário.

domingo, janeiro 21, 2007

II - Algo que não faz estrago: o aquário

Não custa quase nada, e é maravilhoso: cubra o fundo de um recipiente de vidro com um bocado de areia pura, coloque uns ramos de plantas aquáticas comuns, encha cuidadosamente com um litro de água de bica e coloque tudo no parapeito de uma janela ensolarada. Assim que a água ficar límpida e clara e as plantinhas começarem a crescer, ponha dentro alguns peixes, ou melhor, vá munido de um vidro vazio e um coador até o mais próximo charco e, após algumas tentativas, terá uma porção de organismos em sua rede.

Toda a mágica da infância até hoje está para mim em um desses coadores, que obviamente não precisa ser um instrumento perfeito com arco de latão e forro de gaze, senão como manda a tradição, feito por nós mesmos em dez minutos, usando-se um arame cru para o aro e fazendo o saquinho de uma velha meia, cortina ou fralda. Com um instrumento desses aos nove anos de idade, pegando as primeiras dafniláceas para meus peixes, fiquei fascinado pela maravilha do mundo do charco de água doce. O coador tem que ser acompanhado de uma lupa, a qual por sua vez exige a presença de um modesto microscópio, e assim ficou selado o meu destino. Pois quem viu a beleza com os olhos não será deixado com a morte, como diz Platão e sim com a natureza cuja beleza compreendeu. E se realmente tem olhos, então será sem dúvida um naturalista.

Assim, pelo charco adentro você irá colhendo com sua rede entre as plantas, ficando com os sapatos cheios d'água e de lama. Se sua escolha foi certa e você encontrou um charco em que "há algo" então no fundo de sua rede estarão vários seres transparentes se retorcendo. Então vire a ponta da rede dentro do vidro que já deverá estar cheio d'água. Em casa entorne com cuidado dentro do aquário e observe o pequeno mundo que você tem diante dos olhos e das mãos. O aquário é um mundo. Como num charco ou lago natural, bem como em todo o nosso planeta, no aquário a vida animal e a vegetal vivem em absoluto equilíbrio biológico: a planta absorve o gás carbônico exalado pelos animais e de sua parte produz oxigênio.É errado afirmar que a planta não respira como o animal e sim pensar que faz "o contrário". Sua respiração é idêntica: inspira oxigênio e exala gás carbônico; mas além disso a planta em crescimento aproveita o gás carbônico, pois precisa do carbono para se desenvolver expelindo ao mesmo tempo o oxigênio em quantidade bem maior do que necessita para respirar. E dessa sobra de oxigênio é que vivem os animais e os homens. Além disso as plantas aproveitam os excrementos e cadáveres dos seres vivos incorporando suas matérias no grande ciclo da vida.

Qualquer desequilíbrio desse ciclo da matéria, entre a vida dos seres animais e vegetais, traz conseqüências terríveis. Quem, adulto ou criança, já não passou pela tentação de colocar só mais um peixinho no recipiente que já se encontra com a lotação máxima de animais em relação à capacidade dos vegetais.Exatamente esse único peixinho a mais pode acabar com a vida cuidada, com tanto carinho e amor, do aquário. Porque, contendo animais em excesso, sobrevém a falta de oxigênio.Conseqüentemente, sucumbe algum organismo cuja morte talvez nem notemos. A putrefação ocasiona uma multiplicação de bactérias no aquário, a água fica turva, diminuindo ainda mais o teor de oxigênio, o que ocasiona a morte de mais animais. Então, como uma avalancha, a destruição se apodera de tudo e finalmente a vegetação também apodrece e o que há alguns dias atrás era um lago claro, cheio de vegetação exuberante, transforma-se numa poça malcheirosa.

O amante de aquário experiente enfrenta tais perigos com arejamento artificial da água. Só que esses recursos técnicos diminuem o verdadeiro charme do aquário que está exatamente na autoconservação desse mundo aquático, não havendo nenhuma necessidade de ajuda biológica adicional além da alimentação normal dos animais e a limpeza do vidro frontal do recipiente. Quando há um equilíbrio certo, o aquário não necessita de limpeza. Desistindo-se de peixes grandes, principalmente aqueles que revolvem o chão não há mal algum que depois de algum tempo se forme no fundo uma camada de lama dos resíduos animais e de plantas mortas. Isso é até desejável porque com sua penetração fertiliza o solo que originariamente era estéril. Apesar da lama, a água continua cristalina e inodora, como em qualquer lago nos Alpes.

No sentido biológico, o ideal é começar um aquário na primavera com poucas mudinhas de plantas. Pois somente essas plantas criadas nesse recipiente é que durarão; vegetação adulta que se colocar no aquário perde muito em beleza. Dois aquários separados' só por um palmo de distância são dois indivíduos caracterizados como dois lagos distantes um do outro. É exatamente isso o maravilhoso num novo aquário. Ao prepará-lo nunca se sabe quando alcançar-se equilíbrio individual. Vejamos o que aconteceria se preparássemos ao mesmo tempo e com os mesmos materiais três aquários colocados um ao lado do outro numa estante. Plantaríamos neles Helobiales e Myriophyllum. No primeiro logo se alastraria uma selva das Helobiales, desalojando as frágeis Myriophyllum; no segundo aconteceria algo semelhante com as Helobiales; no terceiro as duas espécies se tolerariam e, como se viesse do nada, se desenvolveria uma bela vegetação, frágil e com formas de candelabro à base da delicada alga verde, Nitella flexilis. Mesmo com as qualidades biológicas idênticas e nas mesmas condições de preparo, mesmo com animais variados e propícios, cada um dos três aquários teria se desenvolvido diferentemente, formado o seu mundo.

É necessário muito autocontrole e delicadeza para deixar um aquário "à sua vontade"; mesmo as intervenções mais bem intencionadas podem causar muitos danos. É claro que se pode preparar um "lindo" aquário com um fundo artificial e plantas escolhidas; um filtro evitará a formação de lodo e o arejamento artificial permitirá manter um número superior de peixes, o que será impossível sem tais ajudas. Neste caso as plantas são somente decoração, os animais não necessitam delas, recebendo suficiente oxigênio artificial para poderem viver.

Gosto não se discute. Eu pelo menos considero um aquário uma comunidade de vida que se conserva num equilíbrio biológico.Qualquer outra coisa é um "estábulo" artificialmente conservado, um recipiente incontestavelmente higiênico,sem função própria, servindo só de meio de conservação de certos animais.

Muita experiência e sensibilidade permitem até certo ponto determinar o caráter do mundo vivo que deverá se desenvolver num aquário, escolhendo-se inteligentemente o solo, o local do recipiente, as condições de luz e de calor e, finalmente, os animais a criar. Isso é o máximo na arte do trato do aquário. Um grande mestre era o meu amigo Bernard Hellmann, falecido tragicamente.Num de seus aquários conseguiu realizar a cópia das condições naturais de vida do lago de Altaus: era uma bacia grande, muito alta, fria e um pouco distante da luz, cuja vegetação se compunha de plantas rastejantes (Potamogetonacae) verde-claras e transparentes, no fundo de pedregulhos crescia um musgo de fonte (Fontinales) e a frágil planta tipo candelabro (Chara). Os animais maiores consistiam em algumas pequenas trutas, Pfrille, uma espécie de carpa de até 13 cm, e um pequeno caranguejo de rio, isto é, nada além daquilo que na bacia correspondesse à quantidade de habitantes das águas naturais. Isso sempre tem que ser considerado com muito cuidado quando se deseja conservar animais aquáticos longamente e para reprodução. A maior parte dos peixes decorativos que encontramos nos aquários de nossos amigos facilitam essa tarefa por serem habitantes naturais de pequenos e não muito limpos charcos de terras longínquas. Essas pequenas poças dos trópicos, cujas águas são aquecidas igualmente o ano inteiro pelo sol forte, podem ser facilmente copiadas junto a qualquer janela que dê para o Sul e com a ajuda de um aquecedor elétrico; logo, fica fácil reproduzir suas condições se as compararmos com os tipos das águas naturais de nossas regiões. Por isso é que é muito mais fácil manter ou criar os peixes de nossos lagos ou rios do que os peixes dos trópicos. Acho que agora já será possível entender a razão pela qual aconselhei apanhar o primeiro animal com o conhecido coador no mais próximo charco. Já cuidei de inúmeros aquários, mas o mais comum, o mais barato e o conhecido como o aquário mais banal, o do charco, sempre teve a minha preferência, pois suas paredes conservam a comunidade de vida completa e natural. Pode-se ficar horas sentado defronte, perdido em pensamentos, da mesma forma que diante das chamas de uma lareira, ou do correr das águas de um riacho. E quanto se aprende! Se colocasse tudo numa balança, tudo o que me veio nessas horas de meditação diante do aquário, e numa outra o que aprendi dos livros, como esta seria mais leve!

sábado, janeiro 20, 2007

I - Dissabores com animais

Por que começo falando logo do lado cinzento da vida em comum com animais?

Porque a dimensão dessa disposição para tolerar esse inconveniente, fazer sacrifício, também é uma extensão do amor ao animal. Sinto uma extrema gratidão por meus pais, que só balançavam a cabeça ou suspiravam, consentindo, quando, jovem colegial, eu chegava a casa trazendo mais um novo companheiro, que provavelmente causaria alguns danos. E durante todos esses anos o que não tolerou a minha mulher! Pois, quem poderia exigir da esposa que um rato manso corresse livremente pelo apartamento, roendo pedaços dos lençóis para forrar seu ninho? Ou uma cacatua que arranca todos os botões da roupa no varal? Ou um ganso selvagem manso que dorme no quarto, e que, pela manhã, sai voando pela janela? (E observe-se que gansos selvagens não são asseados!) Ou que diria uma outra mulher ao notar que os lindos pontinhos azuis espalhados pelos móveis e cortinas são manchas que não saem nunca mais? Eram de avezinhas cantoras que haviam se deliciado nos bagos de um sabugueiro! Ou que diria ela se... bem, e assim por diante pelo menos mais umas vinte páginas!

Os senhores me perguntarão: mas tudo isso é absolutamente necessário?Minha resposta é um SIM claro e alto. Seguramente pode-se manter animais em bonitas gaiolas, mas conhecer animais superiores e de espírito vivo é somente possível deixando-os livres. Como é pobre, interiormente mutilado, um macaco ou um papagaio grande criado em gaiola; e como é vivo, interessante, esse mesmo animal em liberdade total! Nesse caso, é bom preparar-se para aborrecimentos e prejuízos. Sempre foi especialidade minha, por motivo de método científico,manter os animais superiores em absoluta liberdade, como também grande parte de minhas pesquisas foi feita com animais mansos e em liberdade. A grade da gaiola em Altenberg tinha uma função inversa à normal: ela impedia que os animais chegassem a casa e ao quintal. Também era-lhes proibido ficar dentro do cercado que contornava os canteiros. Mas, como para qualquer criança, essa proibição exercia um magnetismo sobre esses inteligentes animais. Além do mais, os fiéis gansos selvagens exigiam a companhia humana. Assim, sempre tomava a acontecer, antes que se percebesse que vinte a trinta gansos selvagens pastavam nos canteiros em flor, ou, pior ainda, avançavam pela varanda adentro grasnando sua saudação. Bem, é dificílimo manter uma ave que voa e que não teme as pessoas longe de determinado lugar. Nesse caso nem gritos, nem gesticulações ajudam. Só restou uma maneira eficaz de assustá-los: um enorme guarda-sol vermelho. Como um guerreiro com sua lança, minha mulher pulava com o guarda-sol sob os braços em direção dos gansos selvagens, quando, mais uma vez, eles começavam a pastar nos canteiros recém-plantados. Ela abria o guarda-sol acompanhado de um grito de guerra. Até para os nossos gansos isso era demais, e num rumorejar levantavam vôo. Infelizmente, meu pai aniquilava todas as medidas pedagógicas incutidas nos gansos por minha mulher. O velho senhor amava os gansos cinzentos, principalmente pelo comportamento cavalheiresco dos machos; portanto ele não abria mão de convidá-los diariamente para o café da manhã na varanda. Como nessa época ele já não enxergava muito bem, só notava as conseqüências materiais de tais visitas ao pisar nelas. Para meu espanto, certo dia à tarde, indo ao jardim, quase não encontrei gansos. Com meus pressentimentos corri até o escritório de meu pai e vejam: reunidos ao redor de meu velho sobre um tapete persa maravilhoso, encontravam-se 24 gansos. Ele bebericava seu chá lendo o jornal e oferecendo pedaços de pão às aves, as quais um pouco nervosas nesse ambiente estranho, reagiam de modo desagradável à situação com os intestinos. Tal como outros animais que precisam digerir fibras vegetais, os gansos têm um apêndice muito desenvolvido onde são aproveitadas as bactérias que selecionam a celulose. Normalmente, para seis a oito excreções intestinais ocorre um do conteúdo do apêndice que apresenta cheiro penetrante e coloração verde-escura. Estando o ganso selvagem nervoso, a excreção do apêndice passa a ocorrer seguidamente. Desde essa visita dos gansos já se passaram mais de onze anos; as manchas verde-escuras do tapete ficaram amareladas.

Assim os animais viviam em absoluta liberdade e familiarizados com nossa casa. Eles sempre queriam vir a nós e nunca ir de nós. Em algum outro lugar, quando se grita: "O pássaro escapou da gaiola, fechem logo as janelas", aqui em casa se diz: "Por Deus, fechem as janelas que a cacatua (ou o corvo, o Maquis Mococo, o macaco-capuchinho) quer entrar!" O emprego mais bonito da "ação inversa da grade" foi minha esposa que inventou, quando nossa primeira filha ainda era muito pequenina. Naquela época tínhamos animais grandes e resistentes: corvos (Corvus corax), duas cacatuas reais, dois Maquis Mococos e um macaco-capuchinho que, principalmente os corvos, não podiam ficar a sós com a criança. Assim sendo, minha esposa construiu uma grande gaiola no jardim, colocando o cercado com nossa filha lá dentro.

Nos animais superiores a capacidade e a inclinação de causar danos está, infelizmente, na proporção direta de seu nível espiritual. Por isso, não convém deixar em liberdade, sem fiscalização, os macacos, principalmente. No caso de primatas lemuróides, ainda mais em se tratando do querido maquis mococo, que durante muitos anos foi nosso alegre companheiro doméstico, isso é possível porque eles não têm interesse real em utensílios de casa. Macacos verdadeiros, porém, desde os oriundos de classes inferiores como os do Novo Mundo (platirrinos), interessam-se ardorosamente por qualquer objeto novo e fazem "experiências" com ele. Isso do ponto de vista da psicologia animal é interessantíssimo mas, por um período contínuo, numa casa se torna insustentável financeiramente.

Contarei um caso, para ilustrar.

Quando jovem universitário em Viena, no apartamento de meus pais, eu tinha um belo exemplar de macaco capuchinho (Cebus fatuellus), uma fêmea que se chamava Glória. Ela habitava uma espaçosa gaiola em meu quarto. Quando eu ficava em casa e podia vigiá-la, era-lhe permitido correr livremente pelo quarto; se precisasse sair, eu a prendia na gaiola em que ela se aborrecia muito e tentava escapar de qualquer maneira. Certo dia, à noite, depois de uma ausência prolongada, retomei para casa e tentei acender as luzes, mas tudo ficou escuro como estava; o alegre cantarolar de Glória, que não vinha da gaiola mas sim de cima do trilho da cortina, não me deixou nenhuma dúvida sobre a causa da pane na corrente elétrica. Ao voltar com uma vela acesa, deparei com a seguinte cena: Glória havia conseguido arrastar o pesado abajur de bronze da mesa de cabeceira até o meio do quarto (infelizmente não desligou a tomada) jogando-o violentamente sobre o aquário, quebrando o vidro protetor deste e fazendo a lâmpada sumir na inundação. Daí o curto-circuito! Então, ou talvez já antes, Glória conseguira abrir a fechadura de minha estante, trabalho surpreendente se considerarmos as dimensões diminutas da chave, tirou os volumes 2 e 4 do manual de Medicina Interna de Strümpel, levou-os até o aquário, picou todas as folhas e jogou-as dentro dele. No chão só restavam as capas limpinhas, mas nenhum pedacinho de papel. No aquário, as tristes anêmonas com os tentáculos cheios de papel...

O mais interessante nesse acontecimento foi a relação material dessa "brincadeira de experimentar": o macaco, com certeza, ocupou-se longamente com sua missão; para um animal tão pequeno tem que se aprovar o trabalho realizado. Pena que tenha saído um pouco caro!

Mas o que fica de positivo nesses aborrecimentos sem fim e dispendiosos com os nossos livres companheiros domésticos?

Nem se fale da necessidade, por motivos metódicos para a análise psicológica, de se ter animais de espírito são, sem a influência negativa do cativeiro. O animal solto proporciona um estímulo indescritível, pois, mesmo podendo fugir, fica por afeição. Quando em meus passeios pela margem do Danúbio, ouço o grito sonoro de um corvo que, em resposta ao meu grito, encolhe as asas lá no alto do céu, desce num vôo rasante e pousa suavemente no meu ombro, sinto-me compensado por todos os livros picados e os ovos de pato que pesam na consciência dos corvos. A mágica dessa aventura não diminui, mesmo quando um pássaro como o corvo de Wotan se torna um companheiro doméstico tão comum como para outras pessoas um cachorro ou um gato. Pois o animal, ao adquirir confiança, não só proporciona o que naquele instante seu destino lhe oferece como também as lembranças que me vêm à mente. Num dia cinzento que antecede a primavera desci até o rio Danúbio. Ao longo do leito de inverno ainda estreito e escuro da corrente desciam bandos de patos do mato, gansos das searas, médios e anões, gansos de semeadura e, entre eles, como se devesse ser, um bando de gansos cinzentos europeus. Noto a falta de uma pena no ganso que voa como segundo na formação da parte esquerda do triângulo. Então, de repente, me lembro de tudo sobre esse ganso, da pena que lhe faltava e do acidente em que a perdeu. Pois é claro que esses são os meus gansos cinzas que aí voam, não há outros nas margens do Danúbio nem na arribação.

O segundo ganso na parte esquerda do triângulo é o Martim. No tempo da minha gansa Martina ele noivou com ela, e por isso é que foi batizado de Martim (antes ele era somente um número, já que só os gansos que eu criava recebiam nomes). Nos gansos cinzentos o noivo acompanha todos os passos da noiva. Como Martina andava livremente e sem medo algum por toda a casa, sem considerar os receios do noivo que se criara no campo, ele se via na obrigação de aventurar-se pelos aposentos desconhecidos. Quando se conhece quanta inibição há nesses gansos cinzas, aves de superfícies livres, até de se aventurarem por entre arbustos ou debaixo de árvores, então Martim parecia-nos um pequeno herói acompanhando sua adorada, com o pescoço alongado pela porta adentro até a saleta e depois pela escada até o quarto de dormir. Eu ainda o vejo de pé no meio do aposento, com as penas coladas ao corpo, o bico aberto, tremendo de ansiedade, mas assoviando alto como se desafiasse um desconhecido para a luta. Então, de repente, a porta atrás dele bateu fortemente com grande barulho. Mesmo em se tratando de um ganso corajoso, não se podia esperar que ficasse parado. Ele levantou vôo, indo parar dentro do lustre de cristal, que perdeu vários penduricalhos.O cavalheiro Martim, porém, ficou sem uma pena.

Bem, isso eu sei da pena do ganso que voa como segundo na parte esquerda da formação, mas sei também algo mais consolador. Sei que agora, ao chegar à casa, encontrarei os gansos na escada da varanda a me cumprimentarem com os seus pescoços alongados, o que no ganso tem o mesmo significado do que o abanar do rabo no cachorro.

E enquanto eu ainda olho os gansos em seu vôo rasante sobre a água, e os vejo sumirem na próxima curva, sou tomado, de repente, pela admiração do que me é familiar, que é o ato de nascer da filosofia. E me surpreendo como foi possível chegar a tanta intimidade com uma ave que vive na natureza, e sinto essa realidade como algo muito confortador, como se através dela voltasse a ter ao alcance uma pequena parte do Paraíso de onde fomos expulsos.

Em Koenigsberg, onde por último lecionei na universidade, os corvos se foram, os gansos emigraram não sei para onde. De todas as minhas aves livres voadoras só me restaram as gralhas. Essas foram as primeiras que domiciliei em Altenberg. Esses companheiros de todos os tempos circundam em vôos a alta cumeeira, e seus gritos, cujo sentido conheço em todos os detalhes, descem pela chaminé abaixo até o meu gabinete. E ano após ano seus ninhos sempre entopem os fumeiros, e temos aborrecimentos com os danos que causam nas cerejeiras dos vizinhos.

Será que se entende que não é somente o resultado científico que retribui todos os aborrecimentos e custos, e sim outras coisas, que valem muito mais?

Prefácio

O que realizei na ira
crescia com primor
da noite para o dia – mas murchava
O que semeei do amor
sempre brotava,
amadurecia tarde – mas é abençoado.

Peter Rosegger


Para poder escrever histórias de animais, é preciso possuir um sentimento verdadeiro e quente pela criatura viva. Compete-me dizer que eu sou assim; mas, os belos versos de Rosegger não me ocorreram por ter este meu livro nascido do meu amor ao animal vivo, mas do ódio dos livros sobre animais. Pois tenho de confessar que se alguma vez produzi algo com raiva na vida foram estas histórias de animais.

Ira de quê? Das inúmeras, ruins e mentirosas histórias sobre animais que hoje se encontram em todas as livrarias; raiva desses escritorezinhos que dizem escrever sobre animais sem nem ao menos conhecê-los. Quem afirma que uma abelha corta a garganta da outra e grita, que lúcios se atracam pelas goelas, demonstra não ter noção do animal que tanto pretende descrever do seu ponto de vista e de seu amor. Se bastassem somente algumas informações das respectivas associações criadoras para se redigir um livro, então pessoas como o velho Heck, Bengt Berg, Paul Eipper, Ernest Seton Thompson ou Waescha Kwonnesin seriam loucos ao dedicarem toda a vida ao estudo dos animais. Não se pode medir quanto erro foi transmitido aos leitores, principalmente aos jovens, por essas histórias irresponsáveis.

Não se discute que falsificações são legítimas liberdades da criação artística. Certo, à poesia é permitido, como com qualquer outro objeto, "estilizar" o animal, conforme a necessidade da composição poética: os lobos, panteras e o inigualável Rikkitikkitavi (Mungos mungo) de Rudyard Kipling falam como homens, a abelha Maja de Waldemar Bonsel é formal e bem educada como uma pessoa.

Tais estilizações só são permitidas para quem conhece verdadeiramente o animal. O artista plástico também não é obrigado a apresentar seu objeto com uma precisão científica. Mas, ai dele, se não for capaz disso, e se só usa a estilização como pretexto de sua incapacidade.

Eu sou um naturalista e não um artista. Portanto não me permitirei liberdades nem estilizações. Além disso, não acho necessário tais liberdades, que basta como em trabalhos científicos manter-se nos fatos puros, quando se quer demonstrar ao leitor quão belo é o animal. Pois as verdades da natureza orgânica são de uma beleza plácida e imponente, e se tomam ainda mais belas quanto mais se penetra em seus detalhes e particularidades. É errado pensar que o realismo da pesquisa, o conhecimento das relações naturais diminuem o prazer que as maravilhas da natureza procuram. Muito pelo contrário: o homem será movido pela realidade da natureza mais profundamente, e por mais tempo, quanto mais ele a conhecer.

Não existe um bom biólogo que não tenha chegado à sua vocação através da satisfação interior pela beleza da criatura viva, e que os conhecimentos adquiridos dessa profissão não lhe tenham aprofundado a alegria na natureza e no trabalho. E, mais ainda que para qualquer outro ramo do estudo da vida, isso vale para a pesquisa, para a qual dediquei toda a vida; ou seja para o estudo do comportamento dos animais. Isto requer tanto uma intimidade imediata com o animal vivo como também uma paciência tão extraordinária do observador, que só o interesse teórico a respeito do animal não bastaria para conferir persistência ao observador se nele não houvesse o amor que sente e que agora também descobre, o mais próximo entre o comportamento do homem e do animal.

Mesmo assim espero que este meu livro afinal não se perderá, apesar de, como já confessei, ter sido elaborado na ira originada do amor.

KONRAD LORENZ

Altenberg, verão de 1949.

Sobre os defeitos de fabricação

Um prefácio penitente para a segunda edição da tiragem original.

Nós, isto é, o autor que nunca escrevera um livro antes, a editora, na verdade uma jurista e em segundo plano impressora de livros, que nunca ainda havia editado um, e finalmente o revisor, homem muito ocupado, mas entre nós três o único profissional, decidimos em uma agradável noite em que discutíamos sobre os bons e os maus livros de animais, fabricar este livrinho. Estamos orgulhosos do nosso produto, mas não queremos ocultar que é falho em alguns pontos.

Como exemplo temos logo o título: Ele Falava com as Bestas, as Aves e os Peixes. Pelo jeito pode ser mal entendido, pois um leitor escreveu-me ter recebido o livro como presente de Natal e quase o relegou porque não conseguia entender em que categoria dos titulandos deveria enquadrar-se.

Depois o problema com o título do terceiro capítulo, "Três vilões no aquário": quem recontar verificará que são somente dois, o coleóptero do gênero Dytiscus e a larva da libélula. O terceiro depredador, o lúcio, foi eliminado pelo revisor porque era comprido demais (o lúcio e não o revisor). Ele porém não alterou o título, ficando assim um depredador a menos. Eu havia pressentido conseqüências terríveis, mas para sorte minha somente um leitor notou o equívoco: um sábio muito conhecido pela sua meticulosidade.

Ainda há também aquela lamentável história do hamster dourado, que se pode deixar livre à vontade no quarto porque – segundo o livro – não rói e não é trepador. Já pressentia algo de ruim ao descobrir, logo após a primeira edição do nosso livrinho, um ninho de hamster no alto de um armário estilo Maria Teresa, dentro de um arquivo de cartas. Um velho e gordo hamster havia descoberto que o papel seria um ótimo material para o seu ninho, e desenvolveu uma maravilhosa técnica de escalada tipo chaminé, com a qual podia subir entre o armário e a parede. Ele tinha roído nos maços de cartas uma espécie de esfera oca usando o papel picado para arrumar agradavelmente o seu ninho. Das cartas que se encontravam no centro do maço, restava somente uma espécie de moldura; mais para as extremidades os círculos iam diminuindo – numa curva que não é privilégio de geômetras – e somente as primeiras e as últimas cartas ficaram intactas. Por isso, cartas de meus queridos leitores, que após honrosas expressões sobre o valor do livro levam ao capítulo do hamster dourado, eu as coloco, em princípio, de lado: já sei o que virá. Eu mesmo desterrei os hamster dourados novamente às suas gaiolas, não por causa do arquivo – outra coisa nunca comeram antes – mas por causa do camundongo do deserto que morava há algum tempo em meu quarto e que correria perigo. Infelizmente por ocasião da última "faxina", minha mulher achou no ninho desse roedor restos de lã azul e vermelha do tapete (do grande tapete persa com manchas originalmente verde-escuras, agora amareladas; compare p. 19), grave prova de crime. Assim,ou o tapete ou o rato terá de abandonar o meu quarto. Ainda não me decidi qual dos dois.

Finalmente, nesses últimos dias andei me aborrecendo tanto com aquários, que o título do segundo capítulo "Algo que não faz estrago – o aquário" parece-me irritante. Outro dia, no silêncio da noite, partiu-se o vidro de um aquário de 100 litros alagando o quarto, e antes de ontem deixaram de funcionar ao mesmo tempo três bombas de arejamento. Até ao menos conseguir o conserto de uma delas, enfrentei uma aposta de sete horas entre a luta das bombas e a vida de inúmeros jovens clicídeos (Etroplus maculatus). Neste livro se encontram várias advertências claras de que não se deve aglomerar muitos peixes em um aquário, pelo menos nunca em número superior que corresponda ao equilíbrio biológico do aquário. Bem, no tal aquário encontravam-se aproximadamente uns trezentos Eletroplus de 2 a 3 cm de comprimento. No máximo deveria ter posto uns trinta. Assim o trabalho de conserto das bombas poderia ser comparado ao de um cirurgião em luta com uma artéria sangrando mas invisível.

Amanhã mesmo, eu juro, os duzentos e setenta Eletroplus a mais serão entregues às várias lojas de peixes decorativos de Viena.

Após todas essas experiências fiquei tão aborrecido com os títulos dos capítulos, que adquiri dois tentilhões só porque o oitavo capítulo se intitula "Não se arrume nenhum tentilhão". São dois lindos filhotes criados por minha colaboradora, a Dra. Use Prechtl-Gilles,para trabalhar na pesquisa das reações com que os jovens pássaros pedem comida. Por enquanto os passarinhos são encantadoramente mansos. Isso para consolo de meus leitores amigos de pássaros, que me enviaram cartas em defesa dos tentilhões.

Apesar de tudo, tudo o que está no livro é verdade – ainda que relativa. É só tentar uma vez manter solto num quarto um esquilo, para que os hamster dourados nos pareçam completamente inofensivos, aquários só muito raramente trazem aborrecimentos e prejuízos, e os tentiIhões, seguramente, não permanecerão tão mansos e encantadores como o são hoje. Portanto, deixemos tudo, justamente, como na primeira edição. *

* Fora a numeração dos vilões (nota do revisor).

Cadê o copright?

Passo agora a publicar, na íntegra, o delicioso livro “Falava com as bestas, as aves e os peixes” de Konrad Lorenz, na tradução (muito ruim, infelizmente) de Ildiko Maria Javor.

É o primeiro livro que leio em que não aparece a palavra “copright” ou qualquer referência aos "direitos exclusivos de publicação". A editora, Editorial Labor do Brasil, não existe mais.

Aconselhado por meu advogado, o sr. Benito Ramírez Visionario, que vive na minha orelha direita, vou em frente.

Boa leitura.

Motivo

EU ElCaballeroErranteDeCochabamba faço saber aos que visitam este blogue: Que tendo EU determinado por força da Lei, segundo o artigo XVII dos Novíssimos Estatutos, que se fizesse instalar neste sítio, para alívio e assistência da mocidade, um centro para divulgação de textos daquelas Ciências a que chamam Naturais: Declaro aos beneficiados que os mesmos textos visam a desterrar das trevas da ignorância os pobres e desassossegados que vivem às voltas com a “incomunicabilidade dos egos”, os “paradigmas da pós-modernidade”, a “questão do homem-mercadoria”, o “paradoxo dos mais despossuídos”; em suma, os escritos a serem publicados destinam-se ao homem comum, imerso em tais profundíssimos problemas, mas privado de todo contato com a Natureza e a Arte libertadoras. Libertas quae sera tamen.
E ainda de acordo com o item IV do supracitado artigo faço constar que o escrevedor tem plena autonomia (mas pouca autoridade) para dar à publicação reflexões pessoais suas e mais ainda excertos da Antologia Nacional e o que mais lhe aproveitar a ele e aos demais seus contemporâneos, comprometendo-se contudo o dito autor a refrear os arroubos d’alma e a vil cobiça de fama, que tanto prejuízo trazem à juventude patrícia.

Pelo que: Faço saber que o presente empreendimento se assenta sobre os pilares inabaláveis da Perene Sabedoria, que logrou casar a Arte com a Ciência, e estas com o Eterno. Dado a bordo de um paco-paco, a caminho de Quillacollo de los Cocaleros Sojuzgados, em janeiro de 2007.

Caballero Errante De Cochabamba