domingo, fevereiro 11, 2007

VII - Nossa gansinha Martina

Chegara o grande momento. Durante vinte e nove dias choquei sobre meus vinte preciosos ovos de gansos selvagens. Isto é, eu mesmo só choquei durante os dois últimos dias, os anteriores eu confiara para uma gansa caseira gorda e branca e uma perua igualmente branca e gorda, que faziam isso com muito mais gosto e melhor do que eu. Somente nos dois últimos dias é que retirei os dez ovos de um branco opaco da perua e os coloquei na minha chocadeira. (A gansa caseira teria que dar conta ela mesma dos outros dez.) Eu queria acompanhar com exatidão o sair da casca dos filhotes. E agora chegara o momento.

Coisas importantes devem acontecer dentro de um ovo como esse do ganso selvagem.

Coloca-se o ouvido nele, ouve-se um crepitar e um mexe-mexe, e agora sim, agora você pode ouvir claramente o assovio baixinho de um “Pip”. Somente uma hora mais tarde é que aparece um buraco no ovo, e aí vemos a primeira coisa que aparece da nova ave: a ponta de seu nariz com o respectivo dente de ovo.

O movimento da cabeça com o qual empurra esse dente de ovo contra a casca de ovo não ocasiona somente o estalar da casca, faz também com que o corpo enroscado da avezinha que se encontra no seu interior faça um movimento e vagarosamente, como em solavancos se vire em torno do eixo mais longo do ovo. Portanto, esse dente de ovo movimenta-se num “círculo paralelo” no interior da casca do ovo, abrindo nessa linha uma série de buracos, até que finalmente, quando o círculo está completo, com um esticar do pescoço a ponta cega do ovo pode ser levantada.

Devagar e com muito esforço o longo pescoço se liberta, mesmo que ainda mal consiga sustentar a cabecinha. O pescoço ainda permanecerá entortado para baixo, na posição embrionária em que foi formado e permaneceu desde sua existência.

Demora várias horas até que as articulações se esticam e se tornam flexíveis, os músculos se fortificam e os órgãos do labirinto que respondem pelo equilíbrio, funcionam, até que o pequeno gansinho descubra que existem um acima e um abaixo e que consiga sustentar a cabeça livremente.

Essa coisa molhada saindo da casca parece muito feia e desperta piedade, principalmente nos parece muito mais molhado do que o é na realidade. Se o tocarmos, poderemos verificar que só está úmido. Essa impressão de sua penugem estar molhada e colada só acontece porque está envolvida por um fino invólucro que não é mais espesso que um fio de cabelo. Mas, todos os pelinhos estão colados uns aos outros, como mechas, por causa desse líquido albuminoso, ficando com um volume mínimo dentro do invólucro. Quando esse seca e cai como um pó, então a penugem que estava presa se liberta. Essa auto-secagem na verdade não ocorre porque desde o princípio estão secos devido à proteção do invólucro contra o líquido do ovo. O arrebentar desse invólucro da penugem é causado naturalmente pelos movimentos da jovem ave que o ativa ao esfregar-se contra as penas da mãe chocadeira e dos irmãos. Quando esse esfregar não pode ser feito, como no meu primeiro ganso selvagem na chocadeira, esse invólucro permanece por um período mais longo que comumente. Num caso como esse pode se fazer uma mágica surpreendente. Tome-se numa mão um chumaço de algodão embebido de óleo e na outra a avezinha, e com cuidado passe-se o algodão muito de leve contra a penugem. O invólucro se desfaz em pedaços mínimos, semelhantes à caspa dos cabelos, e o gansinho se transforma de forma mágica: por onde o chumaço de algodão vai passando aparece uma floresta de fina penugem de um dourado acinzentado, e em poucos segundos tem-se em lugar do pelado, úmido e colado bichinho, uma linda e redonda bola de penas na mão que tem o dobro do volume da outra.

Portanto, meu primeiro gansinho cinzento havia nascido e eu esperava que sob o aquecedor elétrico, que substituía a barriga aquecedora da mãe, se fortificasse suficientemente para poder levar a cabeça erguida e fosse capaz de dar alguns passos.

Com a cabeça inclinada ele me olhava com seus grandes olhos escuros. Como a maioria das aves, o ganso cinzento também fixa com um olho s6 quando quer ver com exatidão. Durante longo tempo, muito longo, o filhote de ganso me olhava. E ao fazer um movimento ou falar algo rapidamente sua atenção tensa soltou-se e o minúsculo ganso “cumprimentara”: com o pescoço alongado e a nuca esticada disse muito rapidamente e em polissílabos o típico som dos gansos cinzentos, que nos gansinhos entoa como um assovio fino e solícito. Eles cumprimentam da mesma forma como os gansos cinzentos adultos e como o farão milhares de vezes na vida. Ele, porém, cumprimentava como se já “tivesse” cumprimentado mil vezes da mesma forma. Mesmo o melhor conhecedor não teria reconhecido ter sido essa a primeira vez que fazia isso na vida. Eu também não sabia ainda nada sobre as duras obrigações que me acarretaria ter resistido à vistoria desses olhinhos escuros e com uma distraída palavra ter motivado esta primeira cerimônia de cumprimento.

A saber, eu pretendia confiar esses dez gansinhos que tinham sido chocados pela perua à nossa já mencionada gansa caseira, que não teria sido capaz de chocar mais de dez ovos, mas que poderia muito bem criar vinte gansinhos. Quando meu gansinho estava “pronto”, três outros já haviam saído do ovo debaixo da gansa. Então transportei meu filhote para o jardim onde a gorda branca se encontrava sentada dentro da casa de cachorro donde enxotara Wolfi, o primeiro, e dono legítimo. Coloquei o meu filhote de ganso bem debaixo da quente e fofa barriga da velha, e fiquei seguro de ter feito o que era certo. Mas a verdade é que eu tinha ainda muito que aprender.

Passaram-se alguns minutos comigo em feliz meditação, sentado defronte do ninho de gansos, quando entoou debaixo da gansa, como que perguntando, um leve assovio: “Wiwiwiwiwi”? Objetiva, a fim de acalmá-la, a velha gansa respondeu com o mesmo som, só que em seu tom: “Gangganggangganggang”. Porém em lugar de acalmar-se como teria feito qualquer outro filhote de ganso sensato, o meu apareceu rapidamente saindo por debaixo das quentes penas, olhou com um olho para cima, bem no rosto da madrasta, e chorando saiu correndo dela: “Pfup, pfup... pfup...” Mais ou menos assim é que soa o “assobio do abandono” de um gansinho, comum para quase todos os filhotes fugidos do ninho.

Completamente ereta, assoviando sem cessar, lá estava a pobre criança entre mim e a gansa. Então, fiz um movimento e o filhote parou de chorar, e com o pescoço alongado e cumprimentando, veio até mim: “Wiwiwiwi...” Isso era realmente comovente, mas eu não estava com intenções de fazer o papel de gansa-mãe. Portanto, tomando o filhote nas mãos recoloquei-o novamente debaixo da barriga da velha e saí correndo. Não havia dado nem dez passos quando ouvi atrás de mim: “pfup... pfup... pfup.” e o filhote desesperado vinha correndo. Ficar de pé ainda não conseguia, sentava-se sobre os calcanhares, seu andar era ainda inseguro e bamboleante. Mas, em virtude da força do desespero já conseguia dominar uma espécie de corrida rápida com seus movimentos.

Entre alguns galiformes essa seqüência surpreendente, porém, conveniente, do amadurecimento de várias formas de movimentos é ainda mais acentuada. Principalmente no perdizes e faisões conseguem correr muito mais cedo do que andar devagar ou ficarem parados quietos.

Poderia ter removido pedras o modo como o pobre filhote com a voz falhada choramingando, entre tombos e cambalhotas, mas com uma rapidez surpreendente e com uma segurança cujo sentido não deixava dúvidas, vinha correndo atrás de mim: eu era sua mãe e não a gansa branca! Suspirando, aceitei minha cruz e levei-o de volta para casa. Apesar de então só pesar 100 gramas, eu sabia muito bem quanto peso, trabalho honesto e tempo me custaria para carregá-lo com dignidade.

Procedi como se tivesse eu adotado o pequeno gansinho, e não ele a mim.

Com um batizado festivo o filhote foi denominado Martina.

O resto do meu dia decorreu como o fazem as gansas mães. Fomos até um prado com relva fresca para pastar, e até consegui convencer meu filhote que urtiga com ovo picado é uma comida deliciosa. Do seu lado, ele também me convenceu de que, pelo menos naquele momento, era impossível deixá-lo só um segundo que fosse. Entrava em pânico e começava a chorar com um choro de partir o coração, então depois de algumas tentativas desisti e construí um cestinho a tiracolo, no qual podia transportá-lo o tempo todo comigo. Quando dormia, pelo menos eu podia movimentar-me livremente.

Nunca dormia longamente de uma só vez, o que não notei no primeiro dia. Mas durante a noite. De noite preparei para meu filhote de ganso um maravilhoso berço com aquecimento elétrico, que já havia servido a alguns filhotes que fugiram dos ninhos e que substituía a barriga aquecedora da mãe. Já tarde da noite, ao colocar minha Martina debaixo do cobertor elétrico, ouvi-a emitir o assobio rápido, como um “Wirrrrr”, que nos gansinhos expressa o adormecer. Então coloquei a caixa com o berço aquecido num canto do quarto e rastejei até a minha cama. Quando eu já estava quase adormecendo ouvi Martina sonolenta e baixinho emitir um “Wirrrrr” novamente. Não me mexi. Então ressoou mais alto, como que perguntando a expressão: “Wiwiwiwi”? Selma Lagerloef, cujo livro sobre o pequeno Nils Holgerson tanto alegrou minha infância, interpreta o significado desse som expressivo com uma sensibilidade maestral, traduzindo-o por “Eu estou aqui? Cadê você? – Wiwiwiwiwi? Aqui estou eu, cadê você?” Eu continuava sem responder e me enrolava mais entre meus travesseiros com a esperança que o filhote adormeceria novamente: mas, qual nada, Wiwiwi- entoava com mais força acompanhado do assobio ameaçador do abandono com o canto dos lábios abaixados e o beiço inferior arredondado, o que nos gansos se expressa pelo pescoço alongado e as penas da cabeça encrespadas. E daí a um momento começou forte e penetrante: pfup, pfup, pfup... Então tive que sair da cama e ir até à caixa. Martina recebeu-me aliviada, cumprimentando-me com o Wiwiwiwiwiwiwi. Parecia não querer parar tamanho era seu alívio de não encontrar-se sozinha na noite. Com cuidado recoloquei-a debaixo do cobertor elétrico: Wirrrrr, wirrrrr. Como devia ser, logo adormeceu e eu fiz o mesmo. Porém mal havia passado uma hora, mais ou menos às dez e meia, ressoou novamente o Wiwiwiwie, tal como da primeira vez, tudo decorreu da mesma forma. Às onze e quarenta e cinco novamente, à uma outra vez. Às duas e quarenta e cinco decidi-me a efetuar uma modificação na arrumação da experiência colocando o berço junto da cabeceira da minha cama. E quando às três e meia ressoou novamente a conhecida pergunta “Eu estou aqui, cadê você?”, respondi com um sotaque ruim na língua dos gansos: Gangganggang batendo levemente no cobertor de aquecimento. Wirrrr, respondia Martina, já estou dormindo, boa-noite. Rapidamente, aprendi a responder com um gangganggang, sem acordar. Acho que até hoje se alguém me perguntar com um Wiwiwiwi quando durmo pesadamente, sou capaz de responder com um gangganggang.

De manhã cedo, ao clarear, nem meu gangganggang, nem as palmadinhas no cobertor davam mais resultado. Às primeiras luzes do dia Martina notara que o cobertor não era eu, e então chorando queria vir para junto de mim. O que fazemos quando nossos queridos recém-nascidos começam a berrar às quatro e meia? Certo, rapidamente o pegamos e colocamos junto a nós na cama, pedindo aos anjos que durma ainda pelo menos uns quinze minutos. E é assim que acontece... Satisfeito você adormece novamente até sentir algo frio e úmido ao seu lado... Essas conseqüências desastrosas nunca ocorreram com minha Martina. Enquanto o gansinho se encontra na condição psicológica “de estar debaixo da mãe”, ele fica seguramente limpo. Porém se ele acorda e quer levantar, terá que ser tirado rapidamente da cama.

Martina era no todo uma criança maravilhosa. O fato de não poder ficar a sós não era teimosia. Temos que entender que para um filho de ave na natureza livre, estar só significa morte certa. Biologicamente é certo que um cordeirinho desgarrado assim não pensa em comer, beber ou dormir, mas gasta até o último alento de energia até à exaustão, em gritos de socorro que o ajudem talvez a reencontrar a mãe.

Possuindo-se vários jovens filhotes de gansos selvagens que estejam um pouco acostumados uns com os outros, com alguma disciplina será possível acostumá-los a ficarem a sós. Um filhote solitário, porém, iria matar-se de choro.

Essa profunda e instintiva aversão à solidão fazia que Martina se amarrasse à minha pessoa. Ela me seguia por todas as partes e causava-lhe grande satisfação quando eu trabalhava na minha mesa de escritório e ela podia ficar deitada debaixo da minha cadeira. Ela não aborrecia, bastava que eu fizesse um resmungo inarticulado, em resposta à sua expressão sonora que me perguntava se eu ainda estava ali, com vida. De dia ela fazia isso de minuto em minuto, durante a noite de hora em hora. Eu gostaria de ver um ser humano – ou melhor: nem quero conhecê-lo – que não ficasse enternecido pela afeição de um filhote de ganso como esse. Era como uma Salix caprea movediça que, em passos medidos e a cômica distinção característica dos gansos, vem andando atrás de você, ou, se você andar apressado, vem correndo com as asas abertas. Comovente, mas ao mesmo tempo irritante como o berrar de um recém-nascido é o assovio do abandono, que ressoa, assim que você sair do quarto, mesmo se for por um só momento; ainda mais emocionante, mas sem irritar é o cumprimentar itenso sem fim, e a imensa alegria quando você reaparece. Na carinhosa dependência de um filhote de ganso, a coisa mais bonita é poder-se andar livremente na natureza com o animal, ficar em contato íntimo com essa criatura selvagem, que ainda não foi domada e poder observá-la.

Como por amor a Martina eu tinha que fazer o papel da gansa-mãe, nem tentei, como havia pretendido antes, colocar junto da gansa doméstica os outros nove gansinhos que haviam saído debaixo da perua, nos dois dias seguintes. Dez pequenos gansinhos cinzentos não requisitam mais tempo do tratador do que um só, e isso porque deixá-los a sós, é bem menos complicado.

Surpreendentemente, Martina não encontrou muita fraternidade nos nove, apesar de ficar bastante com eles, principalmente durante o dia, em passeios comuns. Depois de algumas lutas no início ela foi aceita como uma irmãzinha pelos gansinhos, porém de sua parte ela se importava pouco com eles, não sentindo falta deles quando não se encontravam por ali e estando sempre disposta a sair sozinha comigo abandonando os outros. Apesar de os outros nove também me considerarem sua gansa-mãe, do mesmo modo que Martina, eles eram tão unidos entre si como eram ligados à minha pessoa. Isto é, só ficavam felizes e quietos estando entre si e juntos de mim. No começo tentei levar somente dois ou três comigo e Martina em nossos passeios. Isto porque, para alcançar distâncias maiores, como passar pela rua da aldeia que leva até o rio Danúbio, eu colocava meus gansinhos num certo que carregava comigo. Além do mais, como três ou quatro animais bastassem para as minhas observações, eu teria preferido poder deixar a maioria em casa. Isso, porém, demonstrou ser impossível,porque essa minoria separada do grupo de irmãos ficava o tempo todo inquieta e amedrontada e, apesar da minha presença, sempre tendia a expressar a sensação de abandono com os seus sibilos e ficavam parados, recusando-se a virem juntos.

Essa reação pela falta dos irmãos era menos pessoal do que grupal. Se eu levasse a maioria comigo, me acompanhavam sem hesitação e ficavam quietos. Mas, os que ficavam em casa quase morriam de tanto chorar. Por isso eu tinha que levar ou a Martina sozinha ou os dez comigo em meus passeios. Quando dois anos depois criei novamente um bando de pintinhos, já sabendo disso, só tomei quatro sob meus cuidados.

É inacreditável quanto tempo passei junto de meus filhotes no meu primeiro verão de ganso e mais inacreditável ainda o quanto aprendi com eles. Ciência feliz essa onde a maior parte da pesquisa consiste em ficar nu e selvagem entre um bando de gansos selvagens nas margens do Danúbio, nadando e rastejando com eles.

Sou uma pessoa extremamente preguiçosa, tão preguiçosa que sou um muito melhor observador do que pesquisador. Na realidade só trabalho sob obrigação dos pesados imperativos categóricos de Kant, plenamente contrários à minha tendência natural. O maravilhoso dessa vida e trabalho de observação pura de animais vivendo na selva é que os próprios animais são admiravelmente preguiçosos. Essa pressa imbecil de trabalho que existe no moderno homem civilizado, que por isso não encontra tempo nem para ter uma verdadeira cultura, é totalmente desconhecida dos animais. Mesmo as abelhas e as formigas, símbolos de aplicação, passam a maior parte de seus dias num dolce far niente, só que não podemos “ver” essas hipócritas, porque permanecem em suas casas quando não estão trabalhando. Animais, além disso, também não se deixam pressionar. Se alguém quiser conhecer gansos selvagens, terá que viver com eles; e, querendo viver com eles, terá que se adaptar ao seu ritmo de vida.

Um ser humano que por natureza não possui essa divina preguiça, não “consegue” isso. Um homem de constituição ativa e aplicada ficaria maluco se fosse obrigado a passar um verão inteiro vivendo como um ganso entre gansos, como fiz eu (com intervalos). Pelo menos a metade do dia os gansos selvagens passam deitados, quietos, fazendo digestão. Três quartos da outra metade necessitam para pastar. As outras atividades de cuja observação se depende, preenchem no máximo um oitavo do tempo que passam acordados de dia, nos intervalos entre o pastar e a digestão. Gansos selvagens seriam animais muito enfadonhos, se o que fazem durante esse período de um oitavo de seus dias, não fosse tão interessante.

Se você ficar vagando com um bando de gansos selvagens às margens do Danúbio poderá preguiçar com a consciência muito tranqüila, porque estará obrigando a passar sete oitavos do dia deitado, tomando sol. Sua câmara fotográfica, porém, deverá estar armada e ao seu alcance, mas nada o obrigará a ficar prestando atenção às aves o tempo todo; isso porque a audição já treinada, descobre logo, nas expressões sonoras, se os animais dormem ou param de pastar para se dedicarem a coisas mais interessantes. É claro que enquanto os gansinhos são ainda pequenos e medrosos não largam quem está com ele e é fácil forçá-los a nos acompanharem com um simples afastar chamando-os. Caso se conheçam os sons de expressão do ganso cinzento e se consiga imitá-los de uma forma parecida, é possível conseguir que um bando de gansos já adultos e independentes, saia de um lugar determinado, levante vôo ou faça qualquer outra coisa. Mas, tem que ser cuidadoso o uso de tais influências, não pode ultrapassar além daquilo que os gansos-pais fazem nesse sentido com seus filhotes. Pequenos gansinhos se cansam facilmente não só física como psiquicamente se não forem deixados suficientemente em paz e sossego. Sem dúvida, eu também fatiguei Martina demais nos primeiros dias de vida, e por isso seu crescimento ficou prejudicado e ela continuou magra e nervosa. Jovens gansos já maiores, nos quais o medo de ficar só já diminuiu, não se deixam forçar nesse sentido, ficam simplesmente atrás e começam a comer. No entanto, mesmo assim, temos que ser econômicos em relação a eles com todas as experiências sonoras ou outras, principalmente porque então apagamos e cegamos exatamente as reações que queremos examinar. Um exemplo disso: os gansos têm uma reação inata para o som dos pais que indica que pretendem mudar de lugar. Essa expressão sonora é facilmente reproduzível pelo tratador, o qual pela imitação, pode forçar os gansos a acompanharem-no. Se ele, porém, fizer isso “demais”, isto é, com muito maior freqüência do que acontece normalmente na vida do ganso, acaba cansando essa reação.

Como conseqüência os animais deixam de considerar essa expressão sonora. Assim se aniquila, através de um “adestramento negativo”, exatamente esta forma inata e herdada de reação que se pretendia pesquisar. E é para evitar isso que se precisa ter realmente o que chamam de paciência animal.

Especialmente interessante nos gansos cinzentos são os sons com que eles se expressam que vão embora, nadar ou voar. Já os pequeninos têm uma reação inata para os menores detalhes desse vocabulário bastante complicado. O som mais comum, o conhecido grasnar rápido e baixo dos gansos, entoa também de tempo em tempo quando os animais estão em sossego, se estão ou passeando devagar. Ele ressoa de uma forma especial, quebrada por causa dos tons agudos que a acompanham, e têm seis a dez sílabas. O número das sílabas e o vigor dos tons agudos são paralelos nesse som de voz normal, mas ficam em proporção indireta ao volume do som. Quanto mais sílabas tem o grasnar, mais agudo será o tom e mais baixo o ruído. Quando essas três características aparecem fortemente, isso significa absoluta satisfação, os animais não tendem a deixar tão cedo o lugar. Esse grasnar polissilábico em tom agudo, mas entoado bem baixinho, na linguagem humana quer dizer: aqui está bem, deixe-nos ficar aqui; acrescido do contato sonoro: eu estou aqui, e você ainda está aqui também?

Na medida como vai aparecendo no ganso o desejo de mudar de lugar, vai-se modificando o tom de seu contato sonoro, e de tal forma que o número de sílabas diminui e os tons agudos desaparecem e o grasnar aumenta de volume. Um grasnar de seis sílabas já corresponde a uma marcha lenta mas contínua, isso por exemplo em pastos escassos onde entre um pé e o outro tem que dar mais do que uma ou duas passadas. Com cinco sílabas já domina uma disposição clara para marchar, é raro que catem ainda um pé de plantinha, os animais pensam principalmente em andar para frente. Um grasnar polissilábico significa um motivo forte para mudança de lugar, nesse caso o ganso mantém o pescoço quase sempre alongado e tenso. Trissílabo quer dizer marcha rápida, o pescoço fica extremamente alongado e já avisa o aparecer da “disposição para o vôo”. O som dissilábico, baixo, mas em volume muito alto, “ganggang, ganggang”, quer dizer, sem nenhum equívoco, que o ganso vai levantar vôo no próximo momento.

Não havendo “nenhuma” disposição de vôo, mas sim o desejo de mudar de lugar, ou a pé ou a nado, ele dispõe de uma expressão sonora que só expressa isso e nada mais. Mais ou menos entre um grasnar trissilábico ou polissilábico, exatamente quando pudesse ser levantada a suspeita de uma disposição para voar, o ganso emite então um grito trissilábico de um tom metálico, cuja sílaba média é fortemente acentuada e cujo tom fica umas seis notas acima que as outras duas, mais ou menos como “gangingang”. Pais que guiam filhotes que ainda não são capazes de voar, com freqüência e compreensivelmente expressam a disposição de mudar de lugar com acentuação da intenção de “não” voar. Esse grito é freqüentemente ouvido, emitido por gansos caseiros que guiam os filhotes, tornando-se muito cômico para um conhecedor, pois esses gordos companheiros de qualquer forma mal conseguem voar. :a por isso que esse “protesto” contínuo de que fará a mudança de lugar a pé em vez de voando é completamente supérfluo. Mas, como todas essas expressões são puramente instintivas e herdadas, é claro que os animais não têm noção disso.

Como já foi dito, esse compreender “instintivo” desse vocabulário de contatos em qualquer ganso cinzento é inato e herdado. Já os filhotes de um ou dois dias reagem logo a todos os detalhes descritos. Se deixarmos o som tornar-se mais forte e com menos sílabas, os filhotes param de pastar, levantam as cabecinhas e o bando todo, “na posição de andar”, começa a se deslocar para frente.

Especialmente graciosa e fácil de ser demonstrada é a reação dos filhotes para o “gangingang”. É interessante notar que o gansinho interpreta para si esse som dos pais, especialmente quando fica retardado na marcha, atraído pelo sabor especial de alguma plantinha do pasto. Nesses casos o “gangingang” parece tocá-los como uma chicotada, e com a rapidez máxima e as asinhas abertas correm atrás dos pais ou do substituto deles. Essa reação permitiu-me uma pequena trapaça com a minha graciosa Martina.

Apesar de seu nome não ter sido derivado, como no caso de Tschok, do contato sonoro de atração da sua espécie, nós encontramos para Martina o mais bonito nome-chamariz, que qualquer ave jamais teve em Altenberg: isto é, se entoássemos seu nome no tom e colorido do som do ganso cinzento, “gangingang”, acentuando fortemente o “i”, então com segurança causávamos nela a reação descrita, e Martina aparecia correndo como um cavalo esporado. Principalmente caçadores e cinófilos é que se surpreendiam com o “apelo” que eu havia ensinado ao meu pequeno gansinho que mal completara uma semana. Eu só tinha que cuidar que nenhum outro gansinho “destreinado” se encontrasse ao alcance, porque então viriam todos como se tivesse apertado um botão elétrico.

Da mesma forma como a resposta certa para todas as variedades de expressões sonoras é inata no filhote de ganso, também o é a reação ao som de advertência. Esse consiste em um “gang” monossilábico, na maioria das vezes baixo e nasal, no qual entoa uma espécie de r, e por isso que em letras talvez se expresse melhor esse som com um “ran”. Esse som rouco imita-se do melhor modo entoando a sílaba e inalando ar ao mesmo tempo. Para esse som todas as cabeças de gansos se levantam e o grasnar quase sempre contínuo pára de uma só vez. Se expressarmos esse som mais alto, os gansos adultos entram na disposição de vôo e procuram alcançar um lugar onde consigam ter uma visão ampla e livre, e possam facilmente levantar vôo. Filhotes de ganso, porém, correm para junto das mães ou para o substituto humano e se apertam em montinhos fechados procurando proteção.

Essa disposição amedrontada perdura nos filhotes até ser dado o sinal de fim de alerta. Portanto, os gansos-pais não precisam advertir uma segunda vez, para manter os filhotes quietos, em estado de alerta, podem, portanto, concentrar-se com todos os sentidos no perigo. Quando esse passa, segue o sinal de fim de alerta através de um grasnar baixo, para o qual os filhotes regularmente reagem com os pescoços alongados em uma cerimônia de cumprimentos.

Tão rapidamente como a primavera se transforma em verão, esse gracioso novelo de fina penugem se toma aquela bela ave cinzenta de asas prateadas. Como é encantadora essa transformação de um para outro, como são comoventes as formas desarmônicas entre a criança e o jovem, os pés grandes demais, as articulações fortes e os movimentos desajeitados dos anos da adolescência, que no ganso cinzento, no entanto, se resumem em algumas semanas! Quão lindo é o momento em que alcança a nova harmonia da ave adulta, quando as asas enrijecem e são capazes de se abrirem para o primeiro vôo.